TEXTO 6
[...]
Arandir (numa alucinação) – Dália, faz o seguinte.
Olha o seguinte: diz à Selminha. (violento) Diz
que, em toda minha vida, a única coisa que salva é
o beijo no asfalto. Pela primeira vez. Dália, escuta!
Pela primeira vez, na vida! Por um momento, eu
me senti bom! (furioso) Eu me senti quase, nem
sei! Escuta, escuta! Quando eu te vi no banheiro,
eu não fui bom, entende? Desejei você. Naquele
momento, você devia ser a irmã nua. E eu desejei.
Saí logo, mas desejei a cunhada. Na praça da
Bandeira, não. Lá, eu fui bom. É lindo! É lindo,
eles não entendem. Lindo beijar quem está morrendo!
(grita) Eu não me arrependo! Eu não me
arrependo!
Dália – Selminha te odeia! (Arandir volta para a
cunhada, cambaleante. Passa a mão na boca encharcada.)
Arandir (com voz estrangulada) – Odeia. (muda de
tom) Por isso é que recusou. Recusou o meu beijo.
Eu quis beijar e ela negou. Negou a boca. Não quis
o meu beijo.
Dália – Eu quero!
Arandir (atônito) – Você?Dália (sofrida) – Selminha não te beija, mas eu.
Arandir (contido) – Você é uma criança. (Dália aperta entre as mãos o rosto de Arandir.)
Arandir – Dália. (Dália beija-o, de leve, nos lábios.)
Dália – Te beijei.
Arandir (maravilhado) – Menina!
Dália (quase sem voz) – Agora me beija. Você. Beija.
Arandir (desprende-se com violência) – Eu amo Selminha!
Dália (desesperada) – Eu me ofereço e. Selminha não veio e eu vim.
Arandir – Dália, eu mato tua irmã. Amo tanto que. (muda de tom) Eu ia pedir. Pedir à Selminha para morrer comigo.
Dália – Morrer?
Arandir (desesperado) – Eu e Selminha! Mas ela não veio!
Dália (agarra o cunhado. Quase boca com boca, sôfrega) – Eu morreria.
Arandir – Comigo?
Dália (selvagem) – Contigo! Nós dois! Contigo! Eu te amo!
[...]
(RODRIGUES, Nelson. O beijo no asfalto. Rio de Janeiro:
Nova Fronteira, 1995. p. 98-100.)
O Texto 6 faz menção a desejo. É curioso observar
como o ato de desejar está sempre presente na vida humana
desde o nascimento. O desejo de se descobrir, o desejo
de viver, o desejo de passar no vestibular, o desejo de
ser feliz e o desejo de ter. O desejo é força propulsora que
nos move. Nada nos empurra mais à ação que a vontade
de possuir. O capitalismo, sabendo dessa nossa fraqueza
de querer possuir, acabou por se apoderar dela. Ele lucra
cada dia mais com o consumismo dos indivíduos. Esse consumo alicerçado numa fome insaciável de comprar
nasce muitas vezes no subconsciente do homem, com a
alienação imposta pela chamada “indústria cultural". A
ideia de que o consumo não é desejo natural, mas antinatural,
está alicerçada na filosofia de um filósofo grego da
antiguidade. Ele defende que o maior prazer só é alcançável por meio do conhecimento, da amizade e de uma
vida moderada, livre do medo e da dor. E que o homem
sábio busca a realização dos desejos naturais e necessários, combate os desejos antinaturais e artificiais e evita
com todas as suas forças os desejos dispensáveis.
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