- ID
- 2295922
- Banca
- FUNRIO
- Órgão
- Prefeitura de Nilópolis - RJ
- Ano
- 2016
- Provas
- Disciplina
- Pedagogia
- Assuntos
Desde o começo, sempre, lá estava a ideologia. E sempre tem estado presente. Muitas vezes, o autor nem tem consciência
dela, e o leitor comum não percebe. Mas nem por isso ela deixa de ser no texto, latente, como uma espécie de lapso
freudiano, que desmascara os motivos inconscientes. Ou talvez mais como um lapso junguiano, já que é cultural e
revela maneiras coletivas de pensar, apontando também para os arquétipos.
Alem do mais, a ideologia de um livro também reflete o conjunto de crenças e opiniões da cultura da época em que o
autor vive. Até recentemente, não se suspeitava da força desse processo. Na verdade, ele só se tornou evidente há muito
pouco tempo, depois do desenvolvimento da psicanálise, do refinamento da crítica textual, do afloramento do orgulho
cultural dos povos e pessoas longamente oprimidos, e do aumento de sensibilidade solidária em relação aos outros,
trazido pelos anos 60, com seu despertar em favor dos direitos das minorias ou de maiorias fracas, sem voz.
Em outras palavras, foi apenas depois de campanhas pelos direitos civis, depois do feminismo, depois da luta dos negros
contra o preconceito e a discriminação, depois da consciência anti-imperialista, depois do movimento verde e de tantas
outras conquistas ideológicas recentes que se tornou evidente que, durante muito tempo, os livros didáticos infantis
vinham moldando os jovens para agirem segundo padrões de comportamento que, frequentemente, eram inadequados,
injustos, imorais e agressivos à dignidade humana.
Dou um exemplo concreto. Sempre gostei muito dos contos das Mil e uma noites, entre as minhas histórias favoritas
desde que eu era pequena. Não foi escrito para crianças, é claro, e é uma dessas obras de adultos que as crianças
adotaram. Li e reli essas histórias muitas vezes, umas mais do que as outras, mas, de qualquer modo, repetidamente com
prazer e encantamento. Mas por uma ou outra razão, nunca as tinha relido depois de adulta. Há dois anos, quando
finalmente mergulhei nessa releitura, fiquei estarrecida com o conteúdo racista e sexista da obra. Mas será que o livro
tinha mudado? Evidentemente, não. Quem mudou fui eu. E só mudei porque a sociedade mudou. Mas, provavelmente,
quando alguém de cultura africana leu esse livro antes, à luz do tratamento vergonhoso que foi inflingido a seu povo
durante séculos, com a sensibilidade apurada pela dor que essa consciência lhe trazia, sem dúvida, detectou com
repugnância e revolta os trechos sobre os escravos negros que eu não conseguia suportar agora em minha releitura. Mas
no meu país, tão devedor à cultura africana havia poucos negros que soubessem ler e tivessem condições de ter acesso a
esses livros. E, mesmo que alguns lá chegassem, ainda era menor o número dos que poderiam verbalizar sua crítica por
escrito e conseguir que ela fosse publicada, de modo que pudessem mostrar aos outros leitores a profundidade dos
preconceitos que jaziam sob a superfície de um clássico desse porte. Igualmente acintoso, aliás, é o tratamento dado por
ele às mulheres e nós líamos sem reparar e sem protestar. Foi preciso que o mundo vivesse uma revolução de
consciência, para que eu conseguisse abrir os olhos e enxergasse tudo isso, envergonhada de minha cegueira anterior.
Quero apenas levantar alguns pontos de natureza mais geral sobre todo esse processo. O primeiro é que já vimos, e
repito apenas para recordar e resumir: não existe objeto escrito que seja ideologicamente inocente. Não dá para esquecer
isso.
O segundo é o seguinte: os livros para crianças são especialmente suscetíveis de serem fortemente usados como veículo
de mensagens ideológicas, porque as crianças não podem se defender, como já dissemos. Mas também porque,
tradicionalmente, esses livros vivem num mundo muito promíscuo, onde são facilmente tocados e molestados por coisas
que não podem ser confundidas com literatura.
MACHADO. Ana Maria. Ideologia e livro infantil. Contracorrente Conversas sobre leitura e política, São Paulo: Ática.
(Texto apresentado no Congresso do IBBY em Sevilla.)
No segundo parágrafo, a autora indica que foram abertas novas possibilidades, em favor das maiorias fracas,
após os anos 60.
Dentre as diretrizes educacionais a seguir, a que melhor expressa a valorização da diversidade de referências
na formação da cultura brasileira é a