Roda dos expostos
Ele foi um dos últimos bebês colocados na roda dos expostos. Mas a vida compensou-o devidamente. Entregue a uma família de classe média alta, gente sensível e carinhosa, teve uma infância feliz, com os irmãos, com brinquedos, com livros. Estudou, entrou na universidade, formou-se em Medicina, tornou-se um neurocirurgião famoso,respeitado no país e no exterior. Os pais adotivos faleceram quando tinha quarenta anos. Pouco antes de morrer a mãe revelou-lhe a história da roda dos expostos...
Ele sabia-se adotado, e achava que tinha elaborado bemsua condição,mas a história abalou-o profundamente. Entrou em depressão, mas, depois de fazer sicoterapia, conseguiu aceitar a história.Mais que isso, encontrou uma maneira até certo ponto original de lidar como trauma.
Mandou construir uma roda dos expostos.Não é uma roda pequena, para bebês; é algo grande,onde ele, homem robusto, cabe facilmente. E a partir daí criou uma espécie de ritual.
Todos os anos, no dia de seu aniversário, a porta da luxuosa mansão em que mora é aberta, e, no vão, os empregados colocam a grande roda dos expostos. Ele, vindo da rua, entra nela. A roda gira,uma campainha soa, e logo ele se vê dentro de sua casa, onde a família – uma grande família, esposa,filhos, filhas, netos – recebe-o entre abraços e exclamações de júbilo. Cantam o “parabéns a você”,a roda é retirada e a festa tem início, agora com a presença de amigos e familiares.
Nos primeiros anos as pessoas achavam estranho esse costume.Depois, deram-se conta de que aquilo correspondia a uma necessidade emocional e aceitaram-no. Até o cumprimentam pela ideia, simbólica e generosa.
O que não lhe perguntam, e nem ele fala a respeito, é em que pensa no momento que a roda está girando, transportando-o do exterior para o interior, do abandono para o acolhimento. Dura poucos segundos, esse intervalo, e nem há tempo para refletir muito. Mas é então, certamente, que ele descobre os segredos de sua vida.
(SCLIAR,Moacyr. Roda dos expostos. In: Histórias que os jornais não contam 2ª ed.Rio de Janeiro:Agir, 2009. pp. 109-110.)
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