Reféns das máquinas
Transferimos o fazer para o controlar e o assistir.
Ficamos mais passivos, mas não menos ocupados
A RESPEITO DO TEMPO, as duas queixas
que mais escuto são: que ele corre demais - o ano mal
começa e já está acabando - e que falta tempo livre
para si. Nunca descobri qual a diferença entre tempo
para si e tempo para o outro.
Vivemos o tempo do micro-ondas, do forninho,
do liquidificador, da batedeira, que nos "desensinam" a
arte de conhecer os ingredientes e a química das
receitas.
Na batedeira, qualquer clara vira suspiro. O
micro-ondas derrete tudo de acordo com uma teoria
que desconheço. É só apertar o botão e o calor se faz
sem fogo. Tudo para economizar o tempo geral e
sobrar tempo para si.
Para o almoço, tiro do freezer, ponho no microondas,
bato no liquidificador, ponho na sopeira. Depois,
a máquina lava a louça. Enquanto isso, o que eu faço?
Fico ligado nas máquinas que trabalham para mim, não
sou livre. Esse tempo não é livre.
É verdade que eu não faço força, mas
liberdade enquanto as máquinas trabalham para a
gente é uma quimera, uma ilusão. Mas a gente gosta
de se deixar enganar.
O tempo que deveria sobrar outros
eletroeletrônicos açambarcam. A secretária eletrônica,
os e-mails, o programa de TV ocupam o tempo do
mesmo jeito que esquentar sem micro-ondas.
Transferimos o fazer no tempo para o controlar e
assistir.
Ficamos mais passivos, mas não menos
ocupados. Possivelmente a economia quer que eu use
muitos aparelhos, para que o mercado fique aquecido
e em movimento. Mergulhada na ilusão de que
enquanto eu observo sou mais livre do que quando eu
fazia, vou me submetendo a outras forças, que roubam
e comprimem o meu tempo.
E os anos vão andando mais depressa. Não sei
quanto a você, mas a minha vida está sendo editada,
prensada por essas forças externas.
Proponho inverter o jogo: roubar o tempo
poupado pelas máquinas para voltar ao ritmo da vida
real. Sempre que possível, quero ver o sol se pondo.
Não quero ser submetida ao pôr do sol editado. Quero
esperar a maré subir.
Quero ver a emulsão do ovo com o óleo virar
maionese ao ritmo da minha mão, que deve mexer
sempre para o mesmo lado. Enquanto a maionese vai
crescendo e a mão vai cansando, eu me harmonizo com a vida.
Vamos roubar tempo para voltar a viver, um pouco que
seja, a hora de 60 minutos, fazendo. O tempo criado
pelo movimento de rotação e translação do planeta, o
real, pede passagem.
Anna Verônica Mauther. Reféns das máquinas. Folha de
S. Paulo. São Paulo, 8 jun. 2010.
Observe a passagem do texto abaixo e assinale a alternativa CORRETA quanto a classificação da palavra destacada:
Possivelmente a economia quer que eu use muitos aparelhos, para que o mercado fique aquecido e em movimento.