- ID
- 1405780
- Banca
- VUNESP
- Órgão
- Prefeitura de São Paulo - SP
- Ano
- 2014
- Provas
- Disciplina
- Português
- Assuntos
      Cheguei domingo às oito da manhã, pé ante pé para não  acordar minha mulher. Apesar do voo, que saíra de Manaus às  três da madrugada, estava disposto: havia dormido algumas horas no barco-escola e durante toda a viagem, até aterrissarmos  em São Paulo.
      Desfiz a mala, providência adotada desde que comecei a  viajar feito cigano e sem a qual não sinto haver chegado a lugar  nenhum, e fui correr no Minhocão.
      “Alegria de paulista”, disse uma amiga carioca, quando contei que aproveitava a interdição do tráfego aos domingos para   correr na pista elevada que faz parte da ligação leste-oeste da  cidade, excrescência do urbanismo paulistano acessível a quinhentos metros de casa, no centro.
      Minha amiga tem razão, talvez seja programa de quem vive  numa cidade cinzenta, congestionada, gigantesca, na qual, para  enxergar uma nesga de céu, é preciso correr risco de morte debruçado na janela. Compreendo o encanto de morar em meio a  paisagens paradisíacas ou em cidades bucólicas onde todos se   conhecem, mas para os neuróticos, fascinados pela velocidade   do cotidiano, pelo convívio com a diversidade étnica e com as  manifestações de criatividade que emergem nos aglomerados  humanos, correr domingo de manhãzinha na altura do segundo andar dos prédios da avenida São João é um prazer.
      No interior dos apartamentos, o olhar bisbilhoteiro entrevê  mobílias escuras, guarda-roupas pesados, estantes improvisadas  e, claro, o televisor.
      Duvido que exista paisagem dominical mais urbana. A mulher de camisola florida e cabelo desgrenhado abre a cortina e   boceja, despudorada; o senhor de pijama leva a gaiola do passarinho para o terraço espremido; o homem de abdômen avantajado escova os dentes distraído na janela. Havia planejado  completar vinte e quatro quilômetros, mas, depois de percorrer  seis vezes os três quilômetros de extensão, sucumbi ao peso da  noite mal-dormida. Tomei água de coco, comprei pão e subi pela  escada até o décimo quarto andar do prédio onde moro, exercício aprendido com um de meus pacientes, que aos setenta e seis  anos subia dez vezes por dia doze andares. E, não satisfeito com  a intensidade do esforço, fazia-o vestido com um blusão repleto de bolsos, nos quais distribuía vinte quilos de chumbo.
                                                                        (O Médico Doente, Drauzio Varella, Companhia das Letras. Adaptado)
 
De acordo com o último parágrafo, o autor