O grande desastre aéreo de ontem
Para Cândido Portinari
Vejo sangue no ar, vejo o piloto que levava urna flor para a noiva, abraçado com a hélice. E o violinista em que a morte acentuou a palidez, despenhar-se com sua cabeleira negra e seu estradivarius1. Há mãos e pernas de dançarinas arremessadas na explosão. Corpos irreconhecíveis identificados pelo Grande Reconhecedor. Vejo sangue no ar, vejo chuva de sangue caindo nas nuvens batizadas pelo sangue dos poetas mártires. Vejo a nadadora belíssima, no seu último salto de banhista, mais rápida porque vem sem vida. Vejo três meninas caindo rápidas, enfunadas2, como se dançassem ainda. E vejo a louca abraçada ao ramalhete de rosas que ela pensou ser o paraquedas, e a prima-dona3 com a longa cauda de lantejoulas riscando o céu como urn cometa. E o sino que ia para uma capela do oeste, vir dobrando finados pelos pobres mortos. Presumo que a moça adormecida na cabine ainda vem dormindo, tão tranquila e cega! Ó amigos, o paralítico vem com extrema rapidez, vem como uma estrela cadente, vem com as pernas do vento. Chove sangue sobre as nuvens de Deus. E há poetas miopes que pensam que é o arrebo!4.
LIMA, Jorge de. Poesia completa. Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1980,2v,v.1,p.237).
1. aportuguesamento para a famosa marca de violinos:
Stradivárius.
2. retesadas, infladas, enrijecidas.
3. cantora que faz o papel principal em uma opera.
No uso do vocabulo ESTRADIVÁRIUS, no texto, verifica-se a figura de linguagem: