SóProvas


ID
1485304
Banca
CONSULPLAN
Órgão
HOB
Ano
2015
Provas
Disciplina
Português
Assuntos

Texto
                                           Conversa de grego

           Tinha recebido pequena herança de uma tia. Queria aplicar o dinheiro numa atividade que lhe desse algum lucro, porém, mais que lucro, satisfação intelectual. Descartou a ideia de abrir uma banca de jornal. Jornaleiro tem que acordar de madrugada. Queria coisa mais suave. Foi pedir conselho a um amigo. Ainda há pessoas que acreditam em conselhos. O amigo era criativo.
          - Abra um curso de grego. Todo mundo está abrindo cursos de línguas. Inglês, espanhol... Hoje, com o Mercosul, são comuns jogos de futebol contra a Argentina, o Uruguai, o Chile, o espanhol está em alta. Não se admite mais o portunhol de antes. O negócio de hoje é abrir um curso de espanhol. Inglês também, é claro. Atualmente até para comer um sanduíche é preciso saber inglês. McDonald's, Coca, Blue Life... Não se diz mais apartamento. É loft. Daqui a uns vinte anos, quando o Brasil tiver liquidado sua dívida externa, as relações pessoais com o resto do mundo serão feitas no idioma de Cervantes, de Carlos Gardel e, claro, na língua do Clinton... Entendeu?
          - Não.
          - É simples. É preciso alargar os horizontes. É a razão por que em qualquer esquina da cidade surgem placas de cursos de línguas. Você tem que ser esperto... Entendeu?
          - Ainda não.
          - Serei mais objetivo. A cidade está saturada de cursos de inglês e de espanhol... Percebe?
          - Percebo.
          - Muito bem. Agora me diga: quantos cursos de grego você conhece na cidade?
          - Bem...
          - Taí. Nenhum... Nem um, cara. O que existe é escola de inglês, de espanhol, de informática... Até de ikebana. Mas de grego, rapaz, não existe. Então é isso. Você tem que aproveitar as brechas que o mercado oferece. Abra um curso de grego.
          - Mas...
          - Não tem mas. Já pensou formar classes de alunos interessados em ler Xenofonte no original? O problema do Brasil é que todo mundo quer ir pelo caminho mais fácil. O sujeito abre uma pizzaria, no mês seguinte outros doze cidadãos resolvem abrir o mesmo tipo de negócio na mesma rua. Desse jeito é claro que não vai dar certo... Veja o caso da comida por quilo. Está arruinando com o negócio do prato feito. O tradicional prato feito elaborado com carinho, artesanalmente, cada bar com seu tempero peculiar... Hoje o prato feito está indo pro brejo. Só tem comida por quilo. O mercado vai acabar saturado de comida por quilo. Escute o que lhe digo: daqui a cinquenta anos, ou um pouco mais, quando o Brasil tiver se safado da dívida externa, ninguém vai poder nem olhar comida por quilo... Entendeu?
          - Hum...
          - Vou explicar melhor, Anaxágoras. Teu pai não era comandante da marinha mercante grega?
          - Foi.
          - E tua genitora? Nasceu onde?
          - Em Chipre.
          - Era cipriota. Eu sabia. Perguntei por perguntar. Veja bem. Teu pai era comandante de navio grego, tua mãe era cipriota, você se chama Anaxágoras, passou a infância ouvindo os pais falando grego. Cursou a universidade... Que curso você fez na faculdade?
         - Grego, ué. Você sabe disso...
         - Aí é que está. Você tem tudo para abrir um curso de grego.
         - Você acha que há alguém disposto a aprender grego? Qual a utilidade prática? Inglês vá lá... Até jogador do Palmeiras precisa disso para disputar a taça Toyota...
         - Taça Mitsubishi.
         - Mitsubishi, Honda, tanto faz... Tem o torneio Mercosul...
         - Mercosur.
         - Tanto faz. Mas, grego? Nem sei se a Grécia tem time de futebol.
         - Claro que tem. Mas não estamos falando de futebol. As pessoas precisam alargar seus horizontes culturais. Quantas pessoas sabem quem foi Alexandre, o Grande? A vida de Alexandre é uma novela. Novela - você entendeu o que quero dizer? No-ve-la. Já imaginou emplacar uma novela grega na TV? Quem dominou o mundo? Quem chegou a Roma e a Cartago? Quem atravessou as Colunas de Hércules? Os gregos mudaram a face do mundo, rapaz. Ainda hoje, quando se quer falar que uma mulher é de fechar o comércio, o que se diz?
         - Que é boazuda.
         - Isso quem fala é a ralé. Gente educada diz: “É uma mulher de beleza helênica". As pessoas ainda têm muito o que aprender com Tucídides, com o general Brásidas, com o cerco de Esfactéria, com a guerra do Peloponeso... A Grécia dá samba, amigo. Infelizmente, as pessoas estão sendo induzidas a se entreter com histórias de macarronada, de amores entre fazendeiros e mucamas... Vá por mim, Anaxágoras. Abra um curso de grego. Você vai faturar uma nota. Daqui a cem anos, quando o Brasil..
         - ... zerar a dívida externa...
         - Exato. O grego vai voltar a ter a importância cultural do passado. Mas alguém tem que iniciar o processo. Entendeu?
         - Entendi...
         - Então o próximo passo é bolar o nome da escola. Que tal Ágora? Ágora era a praça onde os gregos discutiam filosofia. Me parece um bom nome para um curso de grego. Gostou da ideia?
         - Não é ruim. Apenas precisa de uns ajustes técnicos...
         Três meses depois Anaxágoras inaugurava o Ágora, um restaurante especializado em delivery de prato-feito grego.

                                       (DIAFÉRIA, Lourenço. Conversa de grego. In.: PINTO, Manuel da Costa.
                                       Crônica brasileira contemporânea. São Paulo: Moderna, 2008. p. 52-56
.)


Sobre o narrador desse texto, analise as afirmativas. 

I.   O narrador conhece os pensamentos e sentimentos do protagonista da história. 
II.  As intenções e os sentimentos do protagonista não são comentados pelo narrador. 
III. O narrador é um personagem secundário. Ele observa de dentro os acontecimentos, ou seja, viveu os fatos narrados. 

Está(ão) correta(s) apenas a(s) afirmativa(s)

Alternativas
Comentários
  • Alguém pode explicar qual o motivo da afirmativa III não ser verdadeira?

  • O item III está errado porque o narrador NÃO viveu os fatos narrados, apenas os descreveu.

  • Como as intenções do protagonista não são comentadas pelo narrador? "Queria aplicar o dinheiro numa atividade que lhe desse algum lucro, porém, mais que lucro, satisfação intelectual. Descartou a ideia de abrir uma banca de jornal. Jornaleiro tem que acordar de madrugada. Queria coisa mais suave. Foi pedir conselho a um amigo. Ainda há pessoas que acreditam em conselhos. "

  • Maira Candido,

    creio que se ler a I e II verá uma sutil diferença que responde seu questionamento;

    O narrador conhece os pensamentos,  intenções e sentimentos do protagonista da história e os descreve e não os comenta ;).  

    Pescou a diferença?

    Foco & Diciplina.

  • Que texto ENORME!!!

  • texto enorme, sem necessidade...Ê Consulplan...

     

     

  • ¬¬

  • Alguns minutos da minha vida que nunca recuperarei lendo esse texto gigante (apesar de legal)... p resolver uma questão bunda dessas... Valeu aí Consulplan!

    Senhor, por que? Cadê a FCC na vida da gnt? Por que o TRF vai fechar com essa banca bunda? A nota de corte desse negocio vai lá nas alturas!

  • Porque lá no início do texto ele faz referência ao protagonista usando o pronome oblíquo"lhe". Isso significa que refere-se a outra pessoa (a ele)
  • Gabi, vc me representa kkkk...

    Rindo com seu comentário. Compartilho do mesmo desespero!!!!!

  • Não é claro que o narrador não participa dos acontecimentos. Se não participa, como reproduz fielmente até as reticências?

  • Letra A

    I.   O narrador conhece os pensamentos e sentimentos do protagonista da história. 

    Um pequeno trecho para comprovar : "O amigo era criativo. " (2° e 3° linha - fala do narrador)

     

    #FÉFORÇAFOCO

  • "Queria algo mais suave." Desejo = sentimento.
  • Dá pra resolver a questão lendo o primeiro parágrafo, em nenhum texto há mudança de narrador.

     

    Narrador em 3ª pessoa (Onisciente) -> Não vive os fatos narrados; Conhece e comenta os pensamentos e sentimentos do protagonista ou dos outros personagens.