Para onde vamos com o autismo?
É preciso que façamos uma reflexão acerca dos
caminhos do autismo. Dos rumos que tomaremos
socialmente diante de uma epidemia diagnostica que tem
assolado a infância com números estarrecedores.
Isso porque, diante de tal epidemia, o princípio
preventivo embasado na relação entre causas únicas e
soluções gerais, que tantas vezes é eficaz em problemas
epidemiológicos de saúde pública (como a vacinação contra
doenças infectocontagiosas, ou a eliminação do mosquito
Aedes para evitar a dengue, para trazer alguns exemplos de
domínio geral), torna-se inoperante diante do autismo.
Tentar fazer o autismo encaixar-se em esquemas
de relações unívocas causa-efeito é uma tentação
recorrente, seja em organizações sociais, discursos
pseudocientíficos, blogs ou mídias - afinal a relação causa efeito
é um esquema conhecido e eficaz diante de muitas
dificuldades e, convenhamos, quem não gostaria de poder
estabelecer soluções simples e gerais?
No entanto, procurar forjar causas únicas e
soluções fáceis diante de questões complexas como o
autismo faz com que se caia em perigosos reducionismos,
que, seja pelo viés organicista, seja pelo viés psicologizante,
produzem conseqüências extremamente danosas para as
pessoas com autismos e seus familiares.
O diagnóstico do autismo e sua terapêutica exigem
considerar a complexidade. Complexo quer dizer aquilo que
está tecido, que está em rede, e é na rede interdisciplinar
que é preciso tratar dessa questão, articulando os campos
de saúde mental, deficiência, educação, assistência social e
judicial.
No autismo, a causa não é única, mas uma
combinação de fatores; o seu quadro não pode ser definido
por um único indicador isolado, o que exige um olhar e uma
escuta clínica acurados; sua evolução pode apresentar
variações muito significativas, o que torna questionáveis os
prognósticos; e, no que diz respeito à terapêutica,
encontram-se documentadas evoluções clínicas de grande
sucesso ou de permanência em uma gravidade nas mais
diferentes abordagens.
Longa é a discussão científica sobre a etiologia do
autismo.Os fatos científicos encontrados até agora
apontam que, se bem no autismo possa haver fatores
genéticos implicados, a princípio, em 50% dos casos (como
revela a pesquisa com metologia big data, ou seja, sobre o
total dos nascimentos, realizada na Suécia entre 1982 e
2006 com 2.049.973 crianças, já comentada por Marcelo
Leite em coluna intitulada "A outra face do autismo"), é
certo que, mesmo quando há fatores genéticos implicados,
não se trata de uma patologia monocausal, ou seja, não é
causada por um único gene, depende de uma combinação
de vários deles.
A questão é ainda mais complexa, pois se sabe
também que todos nascemos com um código genético estabelecido, porém o modo como o mesmo irá se
manifestar depende dos chamados fatores epigenéticos, ou
seja, das experiências de vida, que incluem fatores
ambientais. Tais fatores vão desde o ar que respiramos, a
água que bebemos, até um fator que em nada é desprezível
para a constituição do bebê humano: a relação com os
outros.
A principal característica do ser humano é a de não
nascer pronto desde o ponto de vista orgânico. O cérebro
depende de experiências para se formar e o código
genético também se manifesta em função dessas
experiências.
Portanto, é absolutamente ultrapassado e
reducionista o conceito de que, uma vez autista, sempre
autista. Diagnóstico não é destino - como tantas vezes
pessoas desinformadas acerca da complexidade da
formação orgânica costumam afirmar. Por isso a
intervenção psicanalítica aposta em produzir experiências
de vida constituintes e, desde a sua prática, recolhe
diversos exemplos de pequenas crianças que chegam com
traços autísticos e deixam de tê-los por efeito da
intervenção.
Desde o ponto de vista psíquico, tampouco
nascemos estruturados, e sim abertos a inscrições. Estas
inscrições dependem de certas operações constituintes do
sujeito, que podem ser sustentadas com estilos de cuidados
muito diferentes. Portanto, também é absolutamente
reducionista e anacrônico o conceito de que o autismo
seria uma resposta a uma mãe fria ou pouco afetiva - "uma
mãe geladeira" - como tantas vezes pessoas desinformadas
acerca da concepção psicanalítica continuam a afirmar. A
função materna pode ser exercida com estilos muito
diferentes e depende de uma rede familiar e social para
poder operar. A sustentação da função materna não ocorre
de modo isolado ou individual e por isso é reducionista
qualquer visão de culpabilização da mãe.
Os acontecimentos de vida, as contingências que
cercam o nascimento de uma criança, têm um fator
determinante no estabelecimento da relação mãe-bebê,
por isso o que está em jogo no estabelecimento dessa
relação não pode jamais ser avaliado como fruto de uma
competência inata da mãe ou do bebê.
Quanto aos números assoladores que fazem do
autismo uma epidemia na atualidade cabe interrogarmos
do que ela é fruto.
[...]
(www. estadao. com.br)
Sobre a palavra "que", em destaque no penúltimo parágrafo do texto, pode-se afirmar corretamente que: