- ID
- 1747531
- Banca
- BIO-RIO
- Órgão
- Prefeitura de Mesquita - RJ
- Ano
- 2012
- Provas
- Disciplina
- Português
- Assuntos
TEXTO 1:
Será que sou bobo?
Walcyr Carrasco
Ando perdido em uma selva de palavras. Existem termos destinados a dar a impressão de
que algo não é exatamente o que é. Ou para botar verniz sobre uma atividade banal. Já estão, sim,
incorporados no vocabulário. Servem para dar uma impressão enganosa. E também para ajudar as
pessoas a parecer inteligentes e chiques porque parecem difíceis. Resolvi desvendar algumas dessas
armadilhas verbais.
Seminovo — Já não se fala em carro usado, mas em seminovo. Vendedores adorarn. O termo
sugere que o carro não é tão velho assim, mesmo que se trate de uma Brasília sem motor. Ou que o
câmbio saia na mão do comprador logo depois da primeira curva. E pura técnica de vendas. Vou guardá-
lo para elogiar uma amiga que fez plástica. Talvez ela adore ouvir que está “seminova". Mas talvez...
Sale — É a boa e velha liquidação. As lojas dos shoppings devem achar liquidação muito
chula. Anunciam em inglês. Sale quer dizer que o estoque encalhou. A grife está liquidando, sim! Não
se envergonhe de pedir mais descontos. Pode ser que não seja chique, mas aproveite.
Loft — Quando o loft surgiu, nos Estados Unidos, era uma moradia instalada em antigos galpões
industriais. Sempre enorme e sem paredes divisórias. Vejo anúncios de lofts a torto e a direito. A maioria
corresponde a um antigo conjugado. Só não tem paredes, para lembrar seu similar americano. É preciso
ser compreensivo. Qualquer um prefere dizer que está morando em um loft a dizer em uma quitinete de
luxo.
Cult — Não aguento mais ouvir falar que alguma porcaria é cult. O cult é o brega que ganhou
status. O negócio é o seguinte: um bando de intelectuais adora assistir a filmes de terceira, programas de
televisão populares e afins. Mas um intelectual não pode revelar que gosta de algo considerado brega.
Então diz que é cult. Assim, se pode divertir com bobagens, como qualquer ser humano normal, sem
deixar de parecer inteligente. Como conceito, próximo do cult está o trash. E o lixo elogiado. Trash é
muito usado para filmes de terror. Um candidato a intelectual jamais confessa que não perde um episódio
da série Sexta-Feira 13, por exemplo. Ergue o nariz e diz que é trash. Depois, agarra um saquinho de
pipoca, senta na primeira fila e grita a cada vez que o Jason ergue o machado.
Workshop — E uma espécie de curso intensivo. Existem os bons. Mas o termo se presta a muita
empulhação. Pois, ao contrário dos cursos, no workshop ninguém tem a obrigação de aprender alguma
coisa específica. Basta participar. Muitas vezes botam um sujeito famoso para dar palestras durante dois
dias seguidos. Há alunos que chegam a roncar na sala. Depois fazem bonito dizendo que participaram
de um workshop com fulano ou beltrano. A palavra é imponente, não é?
Releitura — Ninguém, no meio artístico ou gastronômico, consegue sobreviver sem usar essa
palavra. Está em moda. Fala-se em releitura de tudo: de músicas, de receitas, de livros. Em culinária,
releitura serve para falar de alguém que achou uma receita antiga e lhe deu um toque pessoal. Críticos
culinários e donos de restaurantes badalados adoram falar em cardápios com releitura disso e daquilo.
Ora, um cozinheiro não bota seu tempero até na feijoada? Isso é releitura? Então minha avó fazia
releitura e não sabia, coitada. O caso fica mais complicado em outras áreas. Fazer uma releitura de uma
história não é disfarçar falta de ideia? Claro que existem casos e casos. Mas que releitura serve para
disfarçar cópia e plágio, serve. Seria mais honesto dizer “adaptado de..." ou “inspirado em...", como
faziam antes.
Daria para escrever um livro inteiro a respeito. Fico arrepiado quando alguém vem com uma
conversa abarrotada de termos como esses. Parece que vão me passar a perna. Ou a culpa é minha, e não
sou capaz de entender a profundidade da conversa. Nessas horas, fico pensando: será que sou bobo? Ou
tem gente esperta demais?
(CARRASCO, Walcyr. In: SILVA, Carmem Lucia da & SILVA, Nilson Joaquim da. (orgs.) Lições
de Gramática para quem gosta de Literatura. São Paulo: Panda Books, 2007. p. 77-79.)
A crônica de Walcyr Carrasco é construída a partir da seguinte premissa: