SóProvas


ID
1804846
Banca
Quadrix
Órgão
CFP
Ano
2016
Provas
Disciplina
Português
Assuntos

                                                        Mineirinho

    É, suponho que é em mim, como um dos representantes de nós, que devo procurar por que está doendo a morte de um facínora. E por que é que mais me adianta contar os treze tiros que mataram Mineirinho do que os seus crimes. Perguntei a minha cozinheira o que pensava sobre o assunto. Vi no seu rosto a pequena convulsão de um conflito, o mal-estar de não entender o que se sente, o de precisar trair sensações contraditórias por não saber como harmonizá-las. Fatos irredutíveis, mas revolta irredutível também, a violenta compaixão da revolta. Sentir-se dividido na própria perplexidade diante de não poder esquecer que Mineirinho era perigoso e já matara demais; e no entanto nós o queríamos vivo. [...]

    Mas há alguma coisa que, se me faz ouvir o primeiro e o segundo tiro com um alívio de segurança, no terceiro me deixa alerta, no quarto desassossegada, o quinto e o sexto me cobrem de vergonha, o sétimo e o oitavo eu ouço com o coração batendo de horror, no nono e no décimo minha boca está trêmula, no décimo primeiro digo em espanto o nome de Deus, no décimo segundo chamo meu irmão. O décimo terceiro tiro me assassina — porque eu sou o outro. Porque eu quero ser o outro.

    Essa justiça que vela meu sono, eu a repudio, humilhada por precisar dela. Enquanto isso durmo e falsamente me salvo. Nós, os sonsos essenciais. Para que minha casa funcione, exijo de mim como primeiro dever que eu seja sonsa, que eu não exerça a minha revolta e o meu amor, guardados. Se eu não for sonsa, minha casa estremece. [...]

    Em Mineirinho se rebentou o meu modo de viver. [...] Sua assustada violência. Sua violência inocente — não nas consequências, mas em si inocente como a de um filho de quem o pai não tomou conta. Tudo o que nele foi violência é em nós furtivo, e um evita o olhar do outro para não corrermos o risco de nos entendermos. Para que a casa não estremeça. A violência rebentada em Mineirinho que só outra mão de homem, a mão da esperança, pousando sobre sua cabeça aturdida e doente, poderia aplacar e fazer com que seus olhos surpreendidos se erguessem e enfim se enchessem de lágrimas. [...]

    A justiça prévia, essa não me envergonharia. Já era tempo de, com ironia ou não, sermos mais divinos; se adivinhamos o que seria a bondade de Deus é porque adivinhamos em nós a bondade, aquela que vê o homem antes de ele ser um doente do crime. Continuo, porém, esperando que Deus seja o pai, quando sei que um homem pode ser o pai de outro homem. E continuo a morar na casa fraca. Essa casa, cuja porta protetora eu tranco tão bem, essa casa não resistirá à primeira ventania que fará voar pelos ares uma porta trancada. [...] o que me sustenta é saber que sempre fabricarei um deus à imagem do que eu precisar para dormir tranquila e que outros furtivamente fingirão que estamos todos certos e que nada há a fazer. [...] Feito doidos, nós o conhecemos, a esse homem morto onde a grama de radium se incendiara. Mas só feito doidos, e não como sonsos, o conhecemos. [...]

    Até que viesse uma justiça um pouco mais doida. Uma que levasse em conta que todos temos que falar por um homem que se desesperou porque neste a fala humana já falhou, ele já é tão mudo que só o bruto grito desarticulado serve de sinalização. Uma justiça prévia que se lembrasse de que nossa grande luta é a do medo, e que um homem que mata muito é porque teve muito medo. Sobretudo uma justiça que se olhasse a si própria, e que visse que nós todos, lama viva, somos escuros, e por isso nem mesmo a maldade de um homem pode ser entregue à maldade de outro homem: para que este não possa cometer livre e aprovadamente um crime de fuzilamento.

    Uma justiça que não se esqueça de que nós todos somos perigosos, e que na hora em que o justiceiro mata, ele não está mais nos protegendo nem querendo eliminar um criminoso, ele está cometendo o seu crime particular, um longamente guardado. [...]

                                                                                                                     Clarice Lispector                                                                                         (Disponível em ip.usp.br. Adaptado.)

Veja esta definição: "Período iniciado por uma palavra ou locução, seguida de pausa, que tem como continuação uma oração em que essa palavra ou locução não se integra diretamente, embora esteja integrada pelo sentido e, de alguma forma, retomada sintaticamente". No texto apresentado, há algumas ocorrências dessa estrutura, denominada anacoluto. Assinale a alternativa que contenha um período do texto em que isso aconteça.

Alternativas
Comentários
  • Ninguém sabe está questão,quem souber comente por favor. 

  • A resposta é letra "B". 

    a) Além de inicar um discurso direto no diálogo (ex.: então Alice disse: - Eu não sei de nada), outra função para o travessão é sua utilização como vírgula. Nessa alternativa, ele tem a mesma função da vírgula que antecede o "pois". Basta substituir o termo "porque" por "pois" e o travessão por uma vúrgula. 

    b) Percebam que os verbos não concordam. Entretanto, as orações separadas necessitam umas das outras para a significação da frase. A utilização da vírgula é geralmente marcada para denotar termos que se repetem e que podem muito bem serem substituidos por outros ou até (mesmo) retirados da frase. Neste caso, tirando o termo entre vírgulas a frase perderia o sentido. 

    c) A virgula antes do "e" serve tão somente para marcar uma pausa na frase.

    d) A definição dada pela própria questão pede uma pausa. Não há vírgula e nem travessão na frase, logo, não há anacoluto.

    e) A vírgula nessa frase foi necessária pela demarcação de tempo. O motivo está em "na hora em que o justiçeiro mata". Basta reorganizar a frase colocando no início. "Na hora em que o justiçeiro mata, uma justiça que não se esqueça de que ele está cometendo seu crime particular". Essas são fases do discurso. Delimuta-se um tempo, local ou situação, separando-o por uma pausa (vírgula), demonstrando a sucessão lógica de acontecimentos. Por exemplo, "Enquanto João distraía a vendorada, Carlos subtraía as mercadorias". Primeiro um ato e depois o outro. Isso dá coesão ao discurso.

  • O anacoluto acontesse quando ocorre uma quebra na estrutura sintática da oração:

    Essa justiça que vela meu sono, eu a repudio, humilhada por precisar dela.

     

    A frase sublinhada não está ligada sintaticamente à oração, no entanto está indiretamente ligada ao objeto direto de 'repudio' (eu repudio essa justiça)

  • Anacoluto

    Consiste na  mudança da construção sintática no meio da frase, ficando alguns termos desligados do resto do período. Veja o exemplo:

    Esses alunos da escola, não se pode duvidar deles.

     

    A expressão "esses alunos da escola" deveria exercer a função de sujeito. No entanto, há uma interrupção da frase e essa expressão fica à parte, não exercendo nenhuma função sintática. O anacoluto também é chamado de "frase quebrada", pois corresponde a uma interrupção na sequência lógica do pensamento. 
    Exemplos:

    O Alexandre, as coisas não lhe estão indo muito bem.
    velha hipocrisia, recordo-me dela com vergonha. (Camilo Castelo Branco)

     

    Obs.: o  anacoluto deve ser usado com finalidade expressiva em casos muito especiais. Em geral, deve-se evitá-lo.

     

    http://www.soportugues.com.br/secoes/estil/estil9.php

     

    LETRA B

     

     

  • Segundo Douglas Tufano, o tipo de anacoluto mais comum é aquele em que um determinado vocábulo parece que vai ser o sujeito da oração, mas de repente a construção frasal se modifica e ele acaba sem função sintática.

  • Anacoluto me faz lembrar dos discursos de Dilma Roussef.

  • Na primeira leitura, marquei a B, só troquei porque a C estava muito mais descaradamente errada. Mas concordo com você... Mas isso é normal nas provas da ACAFE. Banca horrível.