SóProvas


ID
1837720
Banca
FUNCAB
Órgão
ANS
Ano
2016
Provas
Disciplina
Português
Assuntos

O espelho
Esboço de uma nova teoria da alma humana

   Quatro ou cinco cavalheiros debatiam, uma noite, várias questões de alta transcendência, sem que a disparidade dos votos trouxesse a menor alteração aos espíritos. A casa ficava no morro de Santa Teresa, a sala era pequena, alumiada a velas, cuja luz fundia-se misteriosamente com o luar que vinha de fora. Entre a cidade, com as suas agitações e aventuras, e o céu, em que as estrelas pestanejavam, através de uma atmosfera límpida e sossegada, estavam os nossos quatro ou cinco investigadores de coisas metafísicas, resolvendo amigavelmente os mais árduos problemas do universo.
   Por que quatro ou cinco? Rigorosamente eram quatro os que falavam; mas, além deles, havia na sala um quinto personagem, calado, pensando, cochilando, cuja espórtula no debate não passava de um ou outro resmungo de aprovação. Esse homem tinha a mesma idade dos companheiros, entre quarenta e cinquenta anos, era provinciano, capitalista, inteligente, não sem instrução, e, ao que parece, astuto e cáustico. Não discutia nunca; e defendia-se da abstenção com um paradoxo, dizendo que a discussão é a forma polida do instinto batalhador, que jaz no homem, como uma herança bestial; e acrescentava que os serafins e os querubins não controvertiam nada, e, aliás, eram a perfeição espiritual e eterna.
[...]
   Vai senão quando, no meio da noite, sucedeu que este casmurro usou da palavra, e não dois ou três minutos, mas trinta ou quarenta. A conversa, em seus meandros, veio a cair na natureza da alma, ponto que dividiu radicalmente os quatro amigos. Cada cabeça, cada sentença; não só o acordo, mas a mesma discussão tornou-se difícil, senão impossível, pela multiplicidade das questões que se deduziram do tronco principal e um pouco, talvez, pela inconsistência dos pareceres. Um dos argumentadores pediu ao Jacobina alguma opinião, - uma conjetura, ao menos.
   - Nem conjetura, nem opinião, redarguiu ele; uma ou outra pode dar lugar a dissentimento, e, como sabem, eu não discuto. Mas, se querem ouvir-me calados, posso contar-lhes um caso de minha vida, em que ressalta a mais clara demonstração
acerca da matéria de que se trata. Em primeiro lugar, não há uma só alma, há duas...
   - Duas?
   - Nada menos de duas almas. Cada criatura humana traz duas almas consigo: uma que olha de dentro para fora, outra que olha de fora para dentro... Espantem-se à vontade, podem ficar de boca aberta, dar de ombros, tudo; não admito réplica. Se me replicarem, acabo o charuto e vou dormir. A alma exterior pode ser um espírito, um fluido, um homem, muitos homens, um objeto, uma operação. Há casos, por exemplo, em que um simples botão de camisa é a alma exterior de uma pessoa; - e assim também a polca, o voltarete, um livro, uma máquina, um par de botas, uma cavatina, um tambor, etc. Está claro que o ofício dessa segunda alma é transmitir a vida, como a primeira; as duas completam o homem, que é, metafisicamente falando, uma laranja. Quem perde uma das metades, perde naturalmente metade da existência; e casos há, não raros, em que a perda da alma exterior implica a da existência inteira. Shylock, por exemplo. A alma exterior daquele judeu eram os seus ducados; perdê-los equivalia a morrer. ‘‘Nunca mais verei o meu ouro, diz ele a Tubal; é um punhal que me enterras no coração.” Vejam bem esta frase; a perda dos ducados, alma exterior, era a morte para ele. Agora, é preciso saber que a alma exterior não é sempre a mesma...
[...]
ASSIS, Machado de. Obra Completa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar 1994. v. II. (fragmento)

Com relação ao fragmento do conto de Machado de Assis, é correto afirmar que:

Alternativas
Comentários
  • Letra : A

    Se o candidato tiver preguiça e não ler o texto completo com certeza erra essa questão.
  • ✓A) é a correta para essa questão. Isso pode ser confirmado pelo título/subtítulo e explicado no último parágrafo: "Nada menos de duas almas. Cada criatura humana traz duas almas consigo: uma que olha de dentro para fora, outra que olha de fora para dentro." A controvérsia do homem está justamente na dualidade da alma.

    B) Não há tom de incerteza, menos ainda uma crítica à sociedade cristã e capitalista da época.

    C) a casa do morro de Santa Teresa, onde a conversa ocorre, não é descrita como um ambiente claro. Segundo o autor, iluminava-se por velas e a pouca luz era "misteriosamente" fundida com a da lua.

    D) a alternativa apresenta-se errada, pois o autor não usa de linguagem cotidiana, muito menos típica de uma texto argumentativo. O conto é um texto narrativo e está repleto de descrição (personagem e lugar).

    E) O personagem principal era avesso a discussões sobre qualquer tema. Ele NÃO estabelece diálogo com os colegas, ao contrário, pede para que eles o ouçam em silêncio.

    Gabarito: A

    Fonte: Estratégia Concursos, Professora Rafaela Freitas

  • Não pergunte como acertei essa questão. kkkkk