Na corrida contra a demência
Gláucia Leal
“Sorte daqueles que não têm de morrer”, diz um provérbio tibetano que, volta e meia, me
vem à cabeça. A frase – ligeiramente irônica, já que a finitude é inevitável – tem, como contexto,
a crença na lei de causas e consequências, segundo a qual teremos de nos haver com as
repercussões de nossos atos, nossas intenções e nossas palavras – nesta ou em outras
existências. E não porque tenhamos de ser castigados, mas sim porque prevalece a ideia de que
nada nos acontece sem que, em algum momento, tenhamos criado as causas para isso. Fazendo
uma releitura do ditado oriental, tomo a liberdade de dizer que teríamos sorte se não tivéssemos
de envelhecer. Esse desfecho não é inevitável, claro, mas a alternativa também não parece nada
atraente. Na maioria absoluta, ansiamos pela vida. Com o aumento dessa expectativa, o
problema é chegarem também os “males” dos desgastes impostos pelo tempo. A demência, que
nos rouba de nós mesmos, talvez seja um dos mais temidos.
O mais prevalente desses quadros é a doença de Alzheimer. A patologia pode ter evoluído
concomitantemente com a inteligência humana. Em artigo publicado no periódico
científico bioRxiv, cientistas afirmaram ter encontrado evidências de que, entre 50 mil e 200 mil
anos atrás, a seleção natural impulsionou mudanças em seis genes envolvidos no
desenvolvimento cerebral, o que pode ter contribuído para aumentar a conectividade neuronal,
tornando os humanos modernos mais inteligentes à medida que evoluíram de seus ancestrais
hominídeos. Essa nova capacidade intelectual, porém, não veio sem custo: os mesmos genes
estão implicados no Alzheimer. O geneticista Kun Tang, do Instituto de Ciências Biológicas de
Xangai, na China, que liderou a pesquisa, especula que o distúrbio de memória se desenvolveu à
medida que cérebros em processo de envelhecimento lutavam com novas demandas metabólicas
impostas pela crescente inteligência.
Mas essa é só uma parte da história: se a capacidade de aprender e memorizar nos
penaliza, ela também acena com a possibilidade de afastar a manifestação do Alzheimer, às
vezes por vários anos ou até por toda a vida. O neurocientista David A. Bennett, diretor do
Centro Rush da Doença de Alzheimer em Chicago, um dos mais renomados pesquisadores na
área, revela uma descoberta surpreendente: pessoas com a mesma condição cerebral podem
apresentar estado mental completamente diferente. Enquanto uma perde a memória, outra se
mostra lúcida e capaz. Ou seja, mais importante do que o estado físico dos tecidos é o uso que
se faz deles, apesar dos danos.
Para ganhar a corrida contra a demência, duas armas são fundamentais: afeto e exercício
intelectual. Apostar no que faz bem, manter pessoas queridas por perto, cultivar relações de
intimidade, cuidar de animais e se divertir, movimentar o corpo, passear, falar mais de um idioma
e aprender coisas contribui para postergar o surgimento do Alzheimer e diminuir o número de
anos que se passa doente no fim da vida. Curiosamente, parece que a prevenção está
justamente no que tende a nos tornar mais felizes.
Disponível em: <https://www.uol.com.br/ > . Acesso em:10 set. 2016. [Texto adaptado]
Em conformidade com o gênero discursivo, a linguagem do texto tende à