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ID
2356189
Banca
IBADE
Órgão
SEJUDH - MT
Ano
2017
Provas
Disciplina
Português
Assuntos

Texto para responder às questões.

TE
    De todas as coisas pequenas, estava ali a menor de todas que eu já tinha visto. Não porque ela sofresse dessas severas desnutrições africanas - embora passasse fome mas pelo que eu saberia dela depois.
    Teria uns 4 anos de idade, estava inteiramente nua e suja, o nariz catarrento, o cabelo desgrenhado numa massa disforme, liso e sujo. Chorava alto, sentada no chão da sala escura. A casa de taipa tinha três cômodos pequenos.
    Isso que chamei de sala não passava de um espaço de 2 m por 2 m, sem janelas. Apenas a porta, aberta na parte de cima, jogava alguma luz no ambiente de teto baixo e chão batido. Isso aconteceu na semana passada, num distrito de Sertânia, cidade a 350 km de Recife, no sertão de Pernambuco. A mãe e os outros seis filhos ficaram na porta a nos espreitar, os visitantes estranhos. O marido, carregador de estrume, ganhava R$ 20 por semana, o que somava R$ 80 por mês. Essa a renda do casal analfabeto. Nenhum dos sete filhos frequentava a escola. Não havia água encanada. Compravam a R$ 4 o tambor de 24 litros. O choro da menina seguia atrapalhando a conversa.
    - Ei, por que você está chorando? perguntei, enfiando a cabeça no vão da porta. A menina não ouviu, largada no chão.
    - Ei! Vem cá, eu vou te dar um presente - repeti. Ela olhou para mim pela primeira vez. Mas não se mexeu, ainda chorando.
    - Como é o nome dela? - perguntei à mulher.
    -A gente chama ela de Te-disse, banguela.
    -Te? Mas qual o nome dela? - insisti.
    - Agente chama ela de Te, que ela ainda não foi batizada não.
    - Como assim? Ela não tem nome? Não foi registrada no cartório?
    - Não, porque eu ainda não fui atrás de fazer.
    Te. Olhei de novo para a menina. Era a menor coisa do mundo, uma pessoa sem nome. Um nada. “Te” era antes da sílaba - era apenas um fonema, um murmúrio, um gemido. Entendi o choro, o soluço, o grito ininterrupto no meio da sala. A falta de nome impressionava mais do que a falta de todo o resto.
    Te chorava de uma dor, de uma falta avassaladora. Só podia ser. Chorava de solidão, dessa solidão dos abandonados, dos que não contam para nada, dos que mal existem. Ela era o resultado concreto das políticas civilizadas (as econômicas, as sociais) e de todo o nosso comportamento animal: o de ir fazendo sexo e filhos como os bichos egoístas que somos, enfim.
    Era como se aquele agrupamento humano (uma família?) vivesse num estágio qualquer pré- linguagem, em que nomear as coisas e as pessoas pouco importava. Rousseau diz que o homem pré-histórico não precisava falar para se alimentar. Não foi por causa da comida que surgiu a linguagem. “O fruto não desaparece de nossas mãos”, explica. Por isso não era necessário denominá-lo.
    As primeiras palavras foram pronunciadas para exprimir o que não vemos, os sentimentos, as paixões, o amor, o ódio, a raiva, a comiseração. “Só chamamos as coisas por seus verdadeiros nomes quando as vemos em suas form as verdadeiras.” Só quando Te viu a coisa na minha mão se calou.
    - Ei, Te, olha o que eu tenho para te dar!
    Ela virou-se na minha direção. Fez-se um silêncio na sala. Era uma bala enrolada num papel verde, com letras vermelhas. Então ela se levantou, veio até a porta e pegou o doce, voltou para o mesmo lugar e recomeçou seu lamento.
    Nem a bala serviu de consolo. Era tudo amargura. Só restava chorar, chorar e chorar por essa morte em vida, por essa falta de nome, essa desolação.

FELINTO, Marilene. Te. Folha de S. Paulo, São Paulo, 30 jan. 2001. Brasil, Cotidiano, p. C2. 

Sobre o texto leia as afirmativas a seguir.
I. A autora denuncia o resultado de políticas civilizadoras, que, na realidade, criam formas não civilizadas de convivência.
II. A pequenez da menina era provocada pela severa desnutrição, só comparada à fome africana, pela qual passava.
III. Para a ficcionista, a linguagem é instrumento de construção de identidade emocional.
IV. Além de retratar a situação de pessoas que existem fisicamente e ao mesmo tempo oficialmente não, mostram-se momentos de afetos os mais diversos.
Está correto o que se afirma apenas em: 

Alternativas
Comentários
  • Gabarito: d. I, lll e IV .

    I.CORRETO. A autora denuncia o resultado de políticas civilizadoras, que, na realidade, criam formas não civilizadas de convivência (Antônimos: selvagem, indomesticado, rude, tosco, rústico). "A casa de taipa tinha três cômodos pequenos... R$ 80 por mês era a renda do casal analfabeto. Nenhum dos sete filhos frequentava a escola. Não havia água encanada. Compravam a R$ 4 o tambor de 24 litros... Ela era o resultado concreto das políticas civilizadas (as econômicas, as sociais) e de todo o nosso comportamento animal: o de ir fazendo sexo e filhos como os bichos egoístas que somos"... 

    II. ERRADO. A pequenez da menina era provocada pela severa desnutrição, só comparada à fome africana, pela qual passava. No texto "Não porque ela sofresse dessas severas desnutrições africanas - embora passasse fome mas pelo que eu saberia dela depois."

    III. CORRETO. Para a ficcionista, a linguagem é instrumento de construção de identidade emocional.(O que é Identidade Emocional? é a forma que reagimos a determinado fato, seja positivamente ou negativamente)

    IV. CORRETO. Além de retratar a situação de pessoas que existem fisicamente e ao mesmo tempo oficialmente não, mostram-se momentos de afetos os mais diversos. A criança não foi registrada no cartório, apenas a chamavam de "TE". Texto: " Ela virou-se na minha direção. Fez-se um silêncio na sala. Era uma bala enrolada num papel verde, com letras vermelhas. Então ela se levantou, veio até a porta e pegou o doce, voltou para o mesmo lugar e recomeçou seu lamento."

  • não achei afeto em nada aí.