TEXTO I
Era uma velha sequinha que, doce e obstinada, não parecia compreender que estava só no mundo. Os olhos lacrimejavam sempre, as mãos repousavam sobre o vestido preto e opaco, velho documento de sua vida. No tecido já endurecido encontravam-se pequenas crostas de pão coladas pela baba que lhe ressurgia agora em lembrança do berço. Lá estava uma nódoa amarelada, de um ovo que comera há duas semanas. E as marcas dos lugares onde dormia. Achava sempre onde dormir, casa de um, casa de outro. Quando lhe perguntavam o nome, dizia com voz purificada pela fraqueza e por longuíssimos anos de boa educação:
- Mocinha.
As pessoas sorriam. Contente pelo interesse despertado, explicava:
- Nome, nome mesmo, é Margarida.
(…)
LISPECTOR, Clarice. O grande passeio. In: Felicidade clandestina: contos. Rio de Janeiro. Rocco, 1998, p. 29.
TEXTO II
(…)
- Bem, pode ser assim e pode não ser. Agora, tudo pronto. Dá um passo pra frente, George Jackson. E atenção, sem pressa... venha bem devagar. Se tem alguém com você, que ele fique atrás... se ele se mostrar vai levar um tiro. Venha agora. Devagar, empurra a porta pra abrir, você mesmo... uma fresta apenas para entrar se espremendo, entende?
Não me apressei, não ia dar, mesmo querendo. Dei uma passo lento de cada vez, e não tinha nenhum barulho, achei que escutava só o meu coração. Os cachorros tavam tão quietos como os humanos, mas seguiam um pouco atrás de mim. Quando cheguei nos três degraus de tora, escutei as pessoas destrancando, tirando a barra de ferro e o ferrolho. Coloquei a mão na porta e empurrei um pouco e um pouco mais, até que alguém disse: “Aí, já tá bom – bota a cabeça pra dentro”. Enfiei a cara na fresta, mas achava que eles iam cortar minha cabeça fora.
A vela tava no chão, e ali estavam todos eles, olhando pra mim, e eu pra eles, durante um quarto de minuto. Três homens grandes com espingardas apontadas para mim, o que me fez tremer, vou lhe contar. O mais velho, grisalho e com uns sessenta anos, os outros dois com trinta ou mais – todos refinados e bonitos – e uma senhora grisalha muito doce, e atrás dela duas jovens que eu não conseguia ver direito.
TWAIN, Mark. As aventuras de Huckleberry Finn. Trad. Rosaura Eichenberg. Porto Alegre: L&PM. 2011, p.112.