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ID
2594263
Banca
IBADE
Órgão
IPERON - RO
Ano
2017
Provas
Disciplina
Português
Assuntos

                                       A mulher que ia navegar


     O anúncio luminoso de um edifício em frente, acendendo e apagando, dava banhos intermitentes de sangue na pele de seu braço repousado, e de sua face. Ela estava sentada junto à janela e havia luar; e nos intervalos desse banho vermelho ela era toda pálida e suave.

      Na roda havia um homem muito inteligente que falava muito; havia seu marido, todo bovino; um pintor louro e nervoso; uma senhora morena de riso fácil e engraçado; um físico, uma senhora recentemente desquitada, e eu. Para que recensear a roda que falava de política e de pintura? Ela não dava atenção a ninguém. Quieta, às vezes sorrindo quando alguém lhe dirigia a palavra, ela apenas mirava o próprio braço, atenta à mudança da cor. Senti que ela fruía nisso um prazer silencioso e longo. “Muito!”, disse quando alguém lhe perguntou se gostara de um certo quadro - e disse mais algumas palavras; mas mudou um pouco a posição do braço e continuou a se mirar, interessada em si mesma, com um ar sonhador. 

      Quando começou a discussão sobre pintura figurativa, abstrata e concreta, houve um momento em que seu marido classificou certo pintor com uma palavra forte e vulgar; ela ergueu os olhos para ele, com um ar de censura; mas nesse olhar havia menos zanga do que tédio. Então senti que ela se preparava para o enganar.

    Ela se preparava devagar, mas sem dúvida e sem hesitação íntima nenhuma; devagar, como um rito. Talvez nem tivesse pensado ainda que homem escolheria, talvez mesmo isso no fundo pouco lhe importasse, ou seria, pelo menos, secundário. Não tinha pressa. O primeiro ato de sua preparação era aquele olhar para si mesma, para seu belo braço que lambia devagar com os olhos, como uma gata se lambe no corpo; era uma lenta preparação. Antes de se entregar a outro homem, ela se entregaria longamente ao espelho, olhando e meditando seu corpo de 30 anos com uma certa satisfação e uma certa melancolia, vendo as marcas do maiô e da maternidade e se sorrindo vagamente, como quem diz: eis um belo barco prestes a se fazer ao mar; é tempo. 

    Talvez tenha pensado isso naquele momento mesmo; olhou-me, quase surpreendendo o olhar com que eu estudava; não sei; em todo caso, me sorriu e disse alguma coisa, mas senti que eu não era o navegador que ela buscava. Então, como se estivesse despertando, passou a olhar uma a uma as pessoas da roda; quando se sentiu olhado, o homem inteligente que falava muito continuou a falar encarando-a, a dizer coisas inteligentes sobre homem e mulher; ela ia voltar os olhos para outro lado, mas ele dizia logo outra coisa inteligente, como quem joga depressa mais quirera de milho a uma pomba. Ela sorria, mas acabou se cansando daquele fluxo de palavras, e o abandonou no meio de uma frase. Seus olhos passaram pelo marido e pelo pequeno pintor louro e então senti que pousavam no físico. Ele dizia alguma coisa à mulher recentemente desquitada, alguma coisa sobre um filme do festival. Era um homem moreno e seco, falava devagar e com critério sobre arte e sexo. Falava sem pose, sério; senti que ela o contemplava com uma vaga surpresa e com agrado. Estava gostando de ouvir o que ele dizia à outra. O homem inteligente que falava muito tentou chamar-lhe a atenção com uma coisa engraçada, e ela lhe sorriu; mas logo seus olhos se voltaram para o físico. E então ele sentiu esse olhar e o interesse com que ela o ouvia, e disse com polidez:

       - A senhora viu o filme?

    Ela fez que sim com a cabeça, lentamente, e demorou dois segundos para responder apenas: vi. Mas senti que seu olhar já estudava aquele homem com uma severa e fascinada atenção, como se procurasse na sua cara morena os sulcos do vento do mar e, no ombro largo, a secreta insígnia do piloto de longo, longo curso.

  Aborrecido e inquieto, o marido bocejou - era um boi esquecido, mugindo, numa ilha distante e abandonada para sempre. É estranho: não dava pena.

    Ela ia navegar.


BRAGA, Rubem. A mulher que ia navegar. In: Rubem Braga. Recado da primavera. 5. ed. Rio de Janeiro: Record, 1991. p.80- 82.

Mulher é observada pelo narrador que sente que ela se preparava para enganar o marido. Essa afirmação pode ser comprovada com a seguinte passagem do texto:

Alternativas
Comentários
  • c) "eis um belo barco prestes a se fazer ao mar; é tempo.”

    Correta. 4º Parágrafo e  linhas 14-15: "Como quem diz . . .". Das Alternativas essa é a única que contém uma observação do narrador e quem há uma mentira por parte da mulher. 

    * É necessário ler o texto atentamente.

  • Gabarito Letra C

     

    Resposta da Banca :

    Em resposta ao recurso interposto, temos a dizer que o enunciado afirma que a “Mulher é observada pelo narrador que sente que ela se preparava para enganar o marido”. Observe-se que é o MOMENTO DO PREPARO. Essa afirmação pode ser comprovada com a seguinte passagem do texto: EIS UM BELO BARCO PRESTES A SE FAZER AO MAR; É TEMPO. O narrador observa-a preparando-se, ela, no momento de epifania, ao se olhar no espelho, descobre-se pronta para se entregar a outro homem, fato que se comprova a partir de “O primeiro ato de SUA PREPARAÇÃO era aquele OLHAR PARA SI MESMA, para seu belo braço que lambia devagar com os olhos, como uma gata se lambe no corpo; era uma lenta preparação. Antes de se entregar a outro homem, ela se entregaria longamente ao espelho, olhando e meditando seu corpo de 30 anos com uma certa satisfação e uma certa melancolia, vendo as marcas do maiô e da maternidade e se sorrindo vagamente” e culmina em EIS UM BELO BARCO PRESTES A SE FAZER AO MAR; É TEMPO. Cabe lembrar que o olhar de censura NÃO configura preparo para a traição; configura, sim, repúdio ao que o marido era. Sendo assim, por não haver qualquer inadequação na questão nem em seu gabarito, considera-se improcedente o recurso impetrado.

  • ela ergueu os olhos para ele, com um ar de censura; mas nesse olhar havia menos zanga do que tédio. Então senti que ela se preparava para o enganar

    porque é a letra C ?? nada ver, tinha q ser a E esta claro.. aff !

  • que texto insuportável... mto chato

  • Texto insuportável nem parece q é do rubem Alves 

  • Texto insuportável³