SóProvas


ID
2781946
Banca
PM-MG
Órgão
PM-MG
Ano
2018
Provas
Disciplina
Português
Assuntos

Passeio noturno

Cheguei em casa carregando a pasta cheia de papéis, relatórios, estudos, pesquisas, propostas, contratos. Minha mulher, jogando paciência na cama, um copo de uísque na mesa de cabeceira, disse, sem tirar os olhos das cartas, você está com um ar cansado. Os sons da casa: minha filha no quarto dela treinando impostação de voz, a música quadrifônica do quarto do meu filho. Você não vai largar essa mala?, perguntou minha mulher, tira essa roupa, bebe um uisquinho, você precisa aprender a relaxar.


Fui para a biblioteca, o lugar da casa onde gostava de ficar isolado e como sempre não fiz nada. Abri o volume de pesquisas sobre a mesa, não via as letras e números, eu esperava apenas. Você não pára de trabalhar, aposto que os teus sócios não trabalham nem a metade e ganham a mesma coisa, entrou a minha mulher na sala com o copo na mão, já posso mandar servir o jantar? 

A copeira servia à francesa, meus filhos tinham crescido, eu e a minha mulher estávamos gordos. É aquele vinho que você gosta, ela estalou a língua com prazer. Meu filho me pediu dinheiro quando estávamos no cafezinho, minha filha me pediu dinheiro na hora do licor. Minha mulher nada pediu, nós tínhamos conta bancária conjunta. Vamos dar uma volta de carro?, convidei. Eu sabia que ela não ia, era hora da novela. Não sei que graça você acha em passear de carro todas as noites, também aquele carro custou uma fortuna, tem que ser usado, eu é que cada vez me apego menos aos bens materiais, minha mulher respondeu.

Os carros dos meninos bloqueavam a porta da garagem, impedindo que eu tirasse o meu. Tirei os carros dos dois, botei na rua, tirei o meu, botei na rua, coloquei os dois carros novamente na garagem, fechei a porta, essas manobras todas me deixaram levemente irritado, mas ao ver os pára-choques salientes do meu carro, o reforço especial duplo de aço cromado, senti o coração bater apressado de euforia. Enfiei a chave na ignição, era um motor poderoso que gerava a sua força em silêncio, escondido no capô aerodinâmico. Saí, como sempre sem saber para onde ir, tinha que ser uma rua deserta, nesta cidade que tem mais gente do que moscas. Na avenida Brasil, ali não podia ser, muito movimento. Cheguei numa rua mal iluminada, cheia de árvores escuras, o lugar ideal. Homem ou mulher? Realmente não fazia grande diferença, mas não aparecia ninguém em condições, comecei a ficar tenso, isso sempre acontecia, eu até gostava, o alívio era maior. Então vi a mulher, podia ser ela, ainda que mulher fosse menos emocionante, por ser mais fácil. Ela caminhava apressadamente, carregando um embrulho de papel ordinário, coisas de padaria ou de quitanda, estava de saia e blusa, andava depressa, havia árvores na calçada, de vinte em vinte metros, um interessante problema a exigir uma grande dose de perícia. Apaguei as luzes do carro e acelerei. Ela só percebeu que eu ia para cima dela quando ouviu o som da borracha dos pneus batendo no meio-fio. Peguei a mulher acima dos joelhos, bem no meio das duas pernas, um pouco mais sobre a esquerda, um golpe perfeito, ouvi o barulho do impacto partindo os dois ossões, dei uma guinada rápida para a esquerda, passei como um foguete rente a uma das árvores e deslizei com os pneus cantando, de volta para o asfalto. Motor bom, o meu, ia de zero a cem quilômetros em nove segundos. Ainda deu para ver que o corpo todo desengonçado da mulher havia ido parar, colorido de sangue, em cima de um muro, desses baixinhos de casa de subúrbio.

Examinei o carro na garagem. Corri orgulhosamente a mão de leve pelos pára-lamas, os pára-choques sem marca. Poucas pessoas, no mundo inteiro, igualavam a minha habilidade no uso daquelas máquinas.

A família estava vendo televisão. Deu a sua voltinha, agora está mais calmo?, perguntou minha mulher, deitada no sofá, olhando fixamente o vídeo. Vou dormir, boa noite para todos, respondi, amanhã vou ter um dia terrível na companhia. 

Referência: FONSECA, Rubem. Passeio Noturno, in: Contos Reunidos. São Paulo: Companhia das Letras. 1994.

Leia o fragmento a seguir e marque a alternativa CORRETA.

“Examinei o carro na garagem. Corri orgulhosamente a mão de leve pelos pára-lamas, os pára-choques sem marca. Poucas pessoas, no mundo inteiro, igualavam a minha habilidade no uso daquelas máquinas.”

No fragmento, o autor demostra que o personagem se orgulha da sua perícia e do veículo intacto. No entanto, ao analisarmos todo o texto podemos afirmar que:

Alternativas
Comentários
  • GAB: C (banca)

     

    RECURSO

    Solicita-se a anulação da questão por não conter resposta possível para o que se pede no comando da referida questão.

     

    a) O personagem demonstra um sentimento de rejeição ao poder que lhe inspira a potência do carro.
    Ele claramente não rejeita o poder que lhe inspira o carro, ele tem orgulho dele: “Poucas pessoas, no mundo inteiro, igualavam a minha habilidade no uso daquelas máquinas.”

     

    b) O personagem demonstra um sentimento faccioso em relação ao sentimento altruísta que lhe inspira a sua vítima.
    Seu sentimento não era altruísta e sim prazeroso em relação à vítima, a quem desprezava. No fragmento dado como objeto de análise, não há menção à vítima.

     

    c) O personagem se inebria com a sensação de poder, materializada na potência do carro e na sua inigualável habilidade no uso da máquina.

    Esta assertiva fora dada como correta, porém incorre em erro ao analisar-se o fragmento exposto para base de argumentação. No fragmento em questão, afirma-se que “[Poucas pessoas[, no mundo inteiro, [igualavam a minha habilidade no uso daquelas máquinas].” grifos meus, afirmando, portanto, haver pessoas que se igualavam ao personagem na habilidade com os carros, poucas, mas há.

    Na assertiva, fora usado o vocábulo “inigualável”, contrário de quem se igual, negação de alguém que se iguale, de acordo com o dicionário Houaiss da Língua Portuguesa, 2ª edição, na frase: “na sua inigualável habilidade no uso da máquina”. Sendo assim, não se poderia considerar correta a assertiva que afirma o contrário do que se diz no fragmento dado.

     

    d) O personagem demonstra um sentimento de pragmatismo em relação à potência do carro e sua habilidade no uso da máquina.
    Pragmático ele não tem em relação à potência do carro, portanto assertiva errada mesmo.

     

     

  • A letra C está correta!

    Tendo em vista a psicopatia do personagem, o inigualável como significado de incomparável é perfeitamente plausível, tendo em vista a certeza de que ele era muito bom em sua habilidade, tanto que o personagem se inebria (êxtase) com a sensação de poder.

    c) O personagem se inebria com a sensação de poder, materializada na potência do carro e na sua inigualável habilidade no uso da máquina.

  • Gabarito lera C) O personagem se inebria com a sensação de poder, materializada na potência do carro e na sua inigualável habilidade no uso da máquina

    O psicopata tem a sensação de poder logo de ter executado a vítima, uma vez que só conseguiu tal objetivo porque fez uso de uma ferramenta, a máquina, mas jura que sua habilidade é que faz a diferença para não causar "maiores transtornos"...

  • Ao meu ver a letra C extrapolou no inigualável, tendo em vista que no texto está escrito: ''Poucas pessoas, no mundo inteiro, igualavam...'' Segue o jogo!

  • Que texto maluco

  • Pensei exatamente como o Filipe Affonso.

  • "A copeira servia à francesa" isso significa que a copeira servia 'sem cerimónia, sem aviso prévio, sem dar conhecimento a ninguém'