Leia o trecho do romance S. Bernardo, de Graciliano Ramos,
para responder a questão.
O caboclo mal-encarado que encontrei um dia em casa
do Mendonça também se acabou em desgraça. Uma limpeza. Essa gente quase nunca morre direito. Uns são levados
pela cobra, outros pela cachaça, outros matam-se.
Na pedreira perdi um. A alavanca soltou-se da pedra,
bateu-lhe no peito, e foi a conta. Deixou viúva e órfãos
miúdos. Sumiram-se: um dos meninos caiu no fogo, as lombrigas comeram o segundo, o último teve angina e a mulher
enforcou-se.
Para diminuir a mortalidade e aumentar a produção, proibi a aguardente.
Concluiu-se a construção da casa nova. Julgo que não
preciso descrevê-la. As partes principais apareceram ou aparecerão; o resto é dispensável e apenas pode interessar aos
arquitetos, homens que provavelmente não lerão isto. Ficou
tudo confortável e bonito. Naturalmente deixei de dormir em
rede. Comprei móveis e diversos objetos que entrei a utilizar
com receio, outros que ainda hoje não utilizo, porque não sei
para que servem.
Aqui existe um salto de cinco anos, e em cinco anos o
mundo dá um bando de voltas.
Ninguém imaginará que, topando os obstáculos mencionados, eu haja procedido invariavelmente com segurança e
percorrido, sem me deter, caminhos certos. Não senhor, não
procedi nem percorri. Tive abatimentos, desejo de recuar;
contornei dificuldades: muitas curvas. Acham que andei mal?
A verdade é que nunca soube quais foram os meus atos bons
e quais foram os maus. Fiz coisas boas que me trouxeram
prejuízo; fiz coisas ruins que deram lucro. E como sempre
tive a intenção de possuir as terras de S. Bernardo, considerei legítimas as ações que me levaram a obtê-las.
Alcancei mais do que esperava, mercê de Deus. Vieram-
-me as rugas, já se vê, mas o crédito, que a princípio se esquivava, agarrou-se comigo, as taxas desceram. E os negócios desdobraram-se automaticamente. Automaticamente.
Difícil? Nada! Se eles entram nos trilhos, rodam que é uma
beleza. Se não entram, cruzem os braços. Mas se virem que
estão de sorte, metam o pau: as tolices que praticarem viram
sabedoria. Tenho visto criaturas que trabalham demais e não
progridem. Conheço indivíduos preguiçosos que têm faro:
quando a ocasião chega, desenroscam-se, abrem a boca – e
engolem tudo.
Eu não sou preguiçoso. Fui feliz nas primeiras tentativas
e obriguei a fortuna a ser-me favorável nas seguintes.
Depois da morte do Mendonça, derrubei a cerca, naturalmente, e levei-a para além do ponto em que estava no tempo
de Salustiano Padilha. Houve reclamações.
– Minhas senhoras, seu Mendonça pintou o diabo enquanto viveu. Mas agora é isto. E quem não gostar, paciência, vá à justiça.
Como a justiça era cara, não foram à justiça. E eu, o caminho aplainado, invadi a terra do Fidélis, paralítico de um
braço, e a dos Gama, que pandegavam no Recife, estudando
Direito. Respeitei o engenho do Dr. Magalhães, juiz.
Violências miúdas passaram despercebidas. As questões mais sérias foram ganhas no foro, graças às chicanas
de João Nogueira.
Efetuei transações arriscadas, endividei-me, importei
maquinismos e não prestei atenção aos que me censuravam
por querer abarcar o mundo com as pernas. Iniciei a pomicultura e a avicultura. Para levar os meus produtos ao mercado,
comecei uma estrada de rodagem. Azevedo Gondim compôs sobre ela dois artigos, chamou-me patriota, citou Ford e
Delmiro Gouveia. Costa Brito também publicou uma nota na
Gazeta, elogiando-me e elogiando o chefe político local. Em
consequência mordeu-me cem mil-réis.
(S. Bernardo, 1996.)
O narrador emprega expressão própria da modalidade oral
da linguagem em: