SóProvas


ID
3114082
Banca
FCC
Órgão
SANASA Campinas
Ano
2019
Provas
Disciplina
Português
Assuntos

      De cedo, aprendi a subir ladeira e a pegar bonde andando. Posso dizer, com humildade orgulhosa, que tive morros e bondes no meu tempo de menino.

      Nossa pobreza não era envergonhada. Ainda não fora substituída pela miséria nos morros pobres, como o da Geada. Que tinha esse nome a propósito: lá pelos altos do Jaguaré, quando fazia muito frio, no morro costumava gear. Tínhamos um par de sapatos para o domingo. Só. A semana tocada de tamancos ou de pés no chão.

      Não há lembrança que me chegue sem os gostos. Será difícil esquecer, lá no morro, o gosto de fel de chá para os rins, chá de carqueja empurrado goela abaixo pelas mãos de minha bisavó Júlia. Havia pobreza, marcada. Mas se o chá de carqueja me descia brabo pela goela, como me é difícil esquecer o gosto bom do leite quente na caneca esmaltada estirada, amorosamente, também no morro da Geada, pelas mãos de minha avó Nair.

      A miséria não substituíra a pobreza. E lá no morro da Geada, além do futebol e do jogo de malha, a gente criava de um tudo. Havia galinha, cabrito, porco, marreco, passarinho, e a natureza criava rolinha, corruíra, papa-capim, andorinha, quanto. Tudo ali nos Jaguarés, no morro da Geada, sem água encanada, com luz só recente, sem televisão, sem aparelho de som e sem inflação.

      Nenhum de nós sabia dizer a palavra solidariedade. Mas, na casa do tio Otacílio, criavam-se até filhos dos outros, e estou certo que o nosso coração era simples, espichado e melhor. Não desandávamos a reclamar da vida, não nos hostilizávamos feito possessos, tocávamos a pé pra baixo e pra cima e, quando um se encontrava com o outro, a gente não dizia: “Oi!”. A gente se saudava, largo e profundo: − Ô, batuta*!

*batuta: amigo, camarada.

(Texto adaptado. João Antônio. Meus tempos de menino. In: WERNEK, Humberto (org.). Boa companhia: crônicas. São Paulo, Companhia das Letras, 2005, p. 141-143) 

No texto, o autor lembra o seu tempo de menino, dando destaque

Alternativas
Comentários
  • GABARITO: LETRA A

    ? Não há lembrança que me chegue sem os gostos. Será difícil esquecer, lá no morro, o gosto de fel de chá para os rins, chá de carqueja empurrado goela abaixo pelas mãos de minha bisavó Júlia. Havia pobreza, marcada. Mas se o chá de carqueja me descia brabo pela goela, como me é difícil esquecer o gosto bom do leite quente na caneca esmaltada estirada, amorosamente, também no morro da Geada, pelas mãos de minha avó Nair.

    ? Aspectos sensoriais (relacionados com os sentidos, no caso é apresentado o "paladar", que marca a memória afetiva do autor); aspectos afetivos da memória (relacionados com os vínculos afetivos do autor, sua bisavó, sua avó, marca a vida afetiva do autor).

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  • Esta questão requer compreensão e interpretação textual.

    Alternativa (A) correta - O objetivo do autor é enfatizar suas lembranças de sua época de menino relacionadas a aspectos sensoriais e afetivos da memória.

    Os aspectos sensoriais estão relacionados ao paladar, como se justifica nos trechos “Não há lembrança que me chegue sem os gostos. Será difícil esquecer, lá no morro, o gosto de fel de chá para os rins, chá de carqueja"; “como me é difícil esquecer o gosto bom do leite quente".

    Os aspectos afetivos estão relacionados à lembrança de seus parentes, como se justifica nos trechos “Será difícil esquecer, lá no morro, o gosto de fel de chá para os rins, chá de carqueja empurrado goela abaixo pelas mãos de minha bisavó Júlia"; “como me é difícil esquecer o gosto bom do leite quente na caneca esmaltada estirada, amorosamente, também no morro da Geada, pelas mãos de minha avó Nair"; “na casa do tio Otacílio, criavam-se até filhos dos outros, e estou certo que o nosso coração era simples, espichado e melhor". 

    Alternativa (B) incorreta - Logo no segundo parágrafo, o autor diz: “Nossa pobreza não era envergonhada". Embora houvesse pobreza, não havia o sentimento de indignação em relação a ela.

    Alternativa (C) incorreta - Quando o autor diz: “A miséria não substituíra a pobreza", subentende-se que não houve convívio com os miseráveis.

    Alternativa (D) incorreta - O intuito do autor não é destacar a desigualdade econômica entre seus familiares, mas de mostrar que, mesmo com a pobreza, todos viviam felizes, não ficavam reclamando da vida e ainda eram todos solidários uns com os outros.

    Alternativa (E) incorreta - Pode-se depreender, a partir da leitura do texto, que não havia presença do poder público nos morros.

    Gabarito da professora: Letra A.