Acabo de levantar-me; logo serão cinco horas da manhã;
procuro não fazer barulho, vou até a cozinha e preparo uma
xícara de chá enquanto tento resgatar fragmentos de meus
entressonhos, esses entressonhos que, aos 86 anos, aparecem-me atemporais, misturados com lembranças da infância.
Nunca tive boa memória, sempre sofri essa desvantagem;
mas talvez seja um modo de recordar apenas o que se deve,
talvez a maior coisa que nos aconteceu na vida, a que tem
algum significado profundo, a que foi decisiva – para o bem
e para o mal – nesta complexa, contraditória e inexplicável
viagem rumo à morte que é a vida de toda pessoa. Por isso
minha cultura é tão irregular, repleta de enormes lacunas,
como que construída com restos de belíssimos templos cujos
pedaços se encontram entre detritos e plantas selvagens. Os
livros que li, as teorias que frequentei, deveram-se a meus
próprios tropeços com a realidade.
Quando me param na rua, numa praça ou no trem, para
perguntar-me que livros é preciso ler, respondo sempre:
“Leiam o que os apaixone, apenas isso os ajudará a suportar
a existência”.
Ernesto Sabato. Antes do fim. Trad. Sérgio Molina.
São Paulo: Companhia das Letras, 2000)
Na passagem “Nunca tive boa memória, sempre sofri
essa desvantagem; mas talvez seja um modo de recordar apenas o que se deve, talvez a maior coisa que nos
aconteceu na vida, a que tem algum significado profundo,
a que foi decisiva...”, os termos destacados introduzem
no contexto, respectivamente, as ideias de