Ficou dois
Faz quase 20 anos. Eu estava no mezanino
de um auditório prestigiando a formatura de um
grande amigo. Ele cursou Direito numa instituição
muito qualificada e seu tão esperado momento
de comemoração pelo término da faculdade
havia chegado. Duas fileiras abaixo e duas
cadeiras para a esquerda, um rapaz
acompanhava todo o desenrolar do evento. Não
informo o nome do meu amigo, da instituição e do
rapaz para não criar constrangimentos. Pra falar a
verdade, desconheço o nome do rapaz, mas, como
sei que hoje qualquer pista leva rapidinho à
descoberta de quem é a pessoa, prefiro preservá-la. Não estou aqui para testar a eficiência do
jornalismo investigativo, mas para compartilhar
uma das situações pitorescas por mim
vivenciadas, de modo a refletir sobre ela e,
principalmente, aprender com ela.
No palco e na plateia, havia alegria para dar
e vender. De repente, o paraninfo foi chamado
para fazer o seu pronunciamento. Por um bom
tempo, uma saudação efusiva se manteve até
que começasse a falar. Tão logo cessou aquela
manifestação calorosa, o rapaz desatou a gritar:
“ficou dois!”. A frase deixou subentendido que ele
mesmo ou algum amigo dele teria sido reprovado
pelo paraninfo. Uma mensagem assim lançada
aos quatro ventos naquele ambiente, a priori,
depõe contra a integridade do docente.
“Carrasco, por que reprovar formandos? Que
falta de sensibilidade! – poderia pensar o
público”. Revisitando esse episódio nos dias de
hoje, eu até conseguiria me colocar no lugar do
paraninfo e indagaria: será que esses dois alunos
se empenharam ao realizar os trabalhos e provas
da disciplina? Caso sim, qual a qualidade desses
trabalhos? Como foi o desempenho dos
discentes nas avaliações? Será que eles foram
assíduos e, mais que isso, foram pró-ativos e
participativos nas aulas? Ou demonstraram descaso
ao longo do semestre? Supondo que tivessem
apresentado dificuldades, será que procuraram
conversar com o professor sobre esse assunto? Por
fim, deve haver diferença de tratamento entre um
aluno formando e um não formando?
Ninguém é paraninfo por acaso. Trata-se de
uma pessoa que granjeia ampla credibilidade e
confiança junto aos concluintes da graduação.
Não sou do Direito, mas busco agir com justiça na
prática do ensino. Creio, sinceramente, que não
haja professores com maior senso de justiça que
os dedicados ___ área do Direito. Todos, a bem da verdade, somos juízes, e por isso mesmo
muitas vezes julgamos fatos e indivíduos com
base nas aparências e em poucas ocasiões
alicerçados na essência das coisas. É lamentável
tal realidade, porém, o importante é que o
paraninfo e os dois alunos devem saber o porquê
daquelas reprovações. De minha parte, além de
dar crédito ao professor e entender que a conduta
do rapaz acabou sendo completamente
deselegante, lembro-me que me debati demais
para não perder a compostura. “Ficou dois! Que
pérola! Se o cara ainda for do Direito, sensacional!
– avaliava com meus botões, esforçando-me para
que risada nenhuma irrompesse naquele
instante”. Sim, porque pela gramática tradicional
o correto seria dizer “ficaram dois”.
Acontece que mais tarde compreendi que a
gramática deve, de preferência, ser dominada
pelos falantes da língua portuguesa, porém em
muitos casos ela é simplesmente um livro no qual
diversos conteúdos estão sepultados. Já ___
língua, objeto de estudo dos linguistas, quem dá
vida é o povo. E nada é mais heterogêneo do
que o povo, se considerarmos, especialmente, as
regiões e os níveis de escolaridade das
diferentes gerações de nosso país. Não
podemos esquecer que na praia, no bem-bom
das férias, não se fala com a formalidade que uma
reunião de negócios demanda. Além disso, a
oralidade, invariavelmente, decorre da
improvisação discursiva do emissor, ao passo
que a linguagem escrita é afeita ao planejamento
e à revisão textual. Os sociolinguistas estudiosos
da variação diafásica que o digam.
Independentemente de seus posicionamentos –
que merecem e aqui recebem, de antemão, todo o
meu respeito e apreço –, concluo que, na situação
de comunicação exposta, o rapaz se pronunciou de
modo inadequado. Mais do que isso: perdeu uma
ótima oportunidade para ficar calado. Se assim
procedesse, para a felicidade dos gramáticos, teria
deixado o Rui Barbosa descansar em paz.
(Texto adaptado especialmente para esta prova.
Disponível em:
https://www.linkedin.com/pulse/ficou-dois-tiagopellizzaro/. Acesso em: 13/09/2019.)
Tomando-se exclusivamente a frase “Todos,
a bem da verdade, somos juízes, e por isso
mesmo muitas vezes julgamos fatos e
indivíduos com base nas aparências e em
poucas ocasiões alicerçados na essência
das coisas.”(3º§), o autor se vale de uma
estratégia que pode estar presente na feitura
tanto de textos literários quanto na de não
literários, uma vez que tal trecho representa
o acréscimo, a sua produção textual, de uma
porção: