PALAVRAS CARREGAM RECORTES DO MUNDO
Um termo pode revelar mais de quem o usa do que daquilo que deveria nomear. É por essas e por
outras que nunca se pode tratar a língua como uma ciência exata.
Aquele que, para alguns, é teimoso ou obsessivo, para outros, pode ser apenas determinado; o que
é enfadonho para uns é meticuloso para outros; o irresponsável de uns pode ser o ousado de outros; o que
uns chamam de pessimismo outros chamam de realismo. Impeachment ou golpe, eis uma questão do
momento (vale lembrar que o que houve em 1964 no Brasil, embora seja comumente chamado de golpe
militar, ainda tem quem o chame de revolução).
Como vemos, as palavras carregam uma espécie de recorte da realidade, portanto, a escolha de
cada uma delas revela o modo como a pessoa vê o mundo.
Não faz muito tempo, era comum usarem a expressão “de cor” em referência a pessoas negras.
Tratar uma característica natural de uma pessoa (como a cor de sua pele) com um eufemismo faz parecer
que a característica é, de alguma forma, um traço negativo, algo a ser disfarçado. Em geral, quem usava “de
cor” no lugar de “negro” o fazia em tom de cochicho, quase como se pedisse ao interlocutor permissão para
dizer um palavrão.
POLITICAMENTE CORRETO
Nos Estados Unidos da América, a palavra “nigger” é que é pejorativa, altamente ofensiva. Por
lá, usam-se os termos “afro-american” e “afrodescendant”, fruto de ações afirmativas. No Brasil, o termo
“afrodescendente” aparece sobretudo em traduções do inglês, mas, salvo engano, não é um termo
disseminado entre os falantes.
Entre as ações afirmativas, que visam a dar voz às minorias, está o estímulo ao emprego de termos
chamados de politicamente corretos, uma forma de introduzir um recorte livre de preconceitos arraigados.
O uso dessas palavras é, portanto, parte de um processo de reeducação.
As pessoas que têm algum tipo de deficiência física ou intelectual costumam ser chamadas de
“portadores de necessidades especiais”. Embora essa expressão, que tenta abranger num só grupo pessoas
com quaisquer tipos de deficiência, seja usada como politicamente correta, aqueles que ela procura nomear
pensam de modo diverso, pois repelem o termo “portador”. Vejamos por quê.
Uma consulta ao verbete “portador” do dicionário “Houaiss” traz-nos, entre vários outros
significados, estes dois: que ou aquele que apresenta certa característica diferencial [vagas para (pessoas)
portadoras de deficiência].
1. infectologia – que ou aquele que se encontra infectado por germes de doença [são (crianças)
portadoras de malária].
Já que se buscam formas politicamente corretas (ou afirmativas) de denominar pessoas com
deficiência, seria melhor escolher um termo que não servisse também a algo negativo, associado à ideia de
doença, sobretudo porque ainda é comum na sociedade a ideia (falsa!) de que a deficiência é uma doença.
O termo “especial”, usado não só na locução “necessidades especiais” como também na alusão a
certas síndromes (fulano tem um filho especial), substituiu o antigo “excepcional”, relativo à ideia de
“exceção”, que aparece definido no “Houaiss”, entre outras acepções, assim:
1. diz-se de ou indivíduo que tem deficiência mental [baixo QI (quociente de inteligência)], física
[deformação do corpo] ou sensorial [cegueira, surdez etc.]
“Especial”, naturalmente, é um termo mais adequado, pois substitui a ideia de exceção pela de
especificidade. Como sabemos, no entanto, “especial” carrega fortemente a noção de superioridade
(excelente, fora de série, capaz de evocar coisas boas, aquilo que tem vantagens extras etc.), o que pode
fazer parecer que se está empregando um eufemismo. O emprego de “necessidades específicas” talvez fosse
mais adequado.
“Específico”, todavia, não resolve o emprego genérico pretendido por quem diz ter um “filho
especial” (não se diria “específico” nesse caso, em que se faz alusão, geralmente, a alguma síndrome). Não
é difícil perceber que estamos num terreno delicado, portanto sujeitos a errar na tentativa de acertar.
UM NOVO OLHAR, UMA NOVA ATITUDE
Certamente mais importante que os termos é a atitude que os acompanha. Embora seja bem-intencionado (e importante), o vocabulário politicamente correto, por si só, não basta. É preciso reeducar o
olhar a fim de ver o outro como outra possibilidade, outra condição, outro modo de estar no mundo. Isso
significa não ver o outro filtrado pelo déficit, pelo sinal negativo, mas apenas como diferente, se tanto.
Não poderia aqui deixar de indicar a leitura do comovente texto de Gregório Duvivier, publicado
na Folha, em que, em seu habitual estilo descontraído, trata dessa questão com muita sensibilidade.
“MALACABADO”
Menos ainda poderia deixar de citar todos os textos do blog Assim Como Você, de Jairo Marques,
colunista da Folha, que, há vários anos, vem trabalhando nesse processo de reeducação do olhar das pessoas.
Jairo, ora provocador em sua linguagem, ora comovente em suas descrições, mas, sobretudo
destemido, porque não teme mostrar suas emoções, acaba de publicar seu primeiro livro.
Desde o título, “Malacabado”, o autor desafia o esforço da linguagem politicamente correta. Não
quer, no entanto, dizer que esse empenho não seja válido. Ao dizer “malacabado”, engolindo o hífen da
palavra e dando a ela um tom jocoso, Jairo provoca o leitor (eu sei que é assim que você me vê). Paraplégico
desde os seis meses de idade, em decorrência da poliomielite, o autor vai narrando histórias de sua vida,
que fazem chorar, mas também fazem rir ou, mais que isso, fazem refletir.
Quem estiver em São Paulo na próxima terça-feira, 28 de junho, poderá, a partir das 18h30, trocar
um dedo de prosa com o Jairo Marques, que lançará o seu “Malacabado” na Livraria Martins Fontes, da
avenida Paulista (a loja fica no número 509).
(por Thaís Nicoleti, Folha de São Paulo, 22 de junho de 2016).
Segundo o texto, a escolha de uma palavra em detrimento de outras revela