As cores
Maria Alice abandonou o livro onde seus dedos
longos liam uma história de amor. Em seu pequeno
mundo de volumes, de cheiros, de sons, todas aquelas
palavras eram a perpétua renovação dos mistérios em
cujo seio sua imaginação se perdia. [...] Como seria cor
e o que seria? [...]. Era, com certeza, a nota marcante de
todas as coisas para aqueles cujos olhos viam, aqueles
olhos que tantas vezes palpara com inveja calada e
que se fechavam, quando os tocava, sensíveis como
pássaros assustados, palpitantes de vida, sob seus
dedos trêmulos, que diziam ser claros. Que seria o
claro, afinal? Algo que aprendera, de há muito, ser igual
ao branco. [...]
E agora Maria Alice voltava outra vez ao Instituto.
E ao grande amigo que lá conhecera. [...]. Lembrava-se
da ternura daquela voz, da beleza daquela voz. De como
se adivinhavam entre dezenas de outros e suas mãos
se encontravam. De como as palavras de amor tinham
irrompido e suas bocas se encontrado... De como um dia
seus pais haviam surgido inesperadamente no Instituto e
a haviam levado à sala do diretor e se haviam queixado
da falta de vigilância e moralidade no estabelecimento.
E de como, no momento em que a retiravam e quando
ela disse que pretendia se despedir de um amigo pelo
qual tinha grande afeição e com quem se queria casar, o
pai exclamara, horrorizado:
— Você não tem juízo, criatura? Casar-se com um
mulato? Nunca!
Mulato era cor. Estava longe aquele dia. Estava
longe o Instituto, ao qual não saberia voltar, do qual
nunca mais tivera notícia, e do qual somente restara o
privilégio de caminhar sozinha pelo reino dos livros, tão
parecido com a vida dos outros, tão cheio de cores...
LESSA, O. Seleta de Orígenes Lessa.
Rio de Janeiro: José Olympio, 1973.
No texto, a condição da personagem e os
desdobramentos da narrativa conduzem o leitor a
compreender o(a)