SóProvas


ID
4005079
Banca
FUNCAB
Órgão
Prefeitura de Araruama - RJ
Ano
2015
Provas
Disciplina
Português
Assuntos

Texto para responder à questão.


Restos de Carnaval


    Não, não deste último carnaval. Mas não sei por que este me transportou para a minha infância e para as quartas-feiras de cinzas nas ruas mortas onde esvoaçavam despojos de serpentina e confete. Uma ou outra beata com um véu cobrindo a cabeça ia à igreja, atravessando a rua tão extremamente vazia que se segue ao carnaval.Até que viesse o outro ano. E quando a festa ia se aproximando, como explicar a agitação íntima que me tomava? Como se enfim o mundo se abrisse de botão que era em grande rosa escarlate. Como se as ruas e praças do Recife enfim explicassem para que tinham sido feitas. Como se vozes humanas enfim cantassem a capacidade de prazer que era secreta em mim. Carnaval era meu, meu.
    No entanto, na realidade, eu dele pouco participava. Nunca tinha ido a um baile infantil, nunca me haviam fantasiado. Em compensação deixavam-me ficar até umas 11 horas da noite à porta do pé da escada do sobrado onde morávamos, olhando ávida os outros se divertirem. Duas coisas preciosas eu ganhava então e economizava-as com avareza para durarem os três dias: um lança-perfume e um saco de confete. Ah, está se tornando difícil escrever. Porque sinto como ficarei de coração escuro ao constatar que, mesmo me agregando tão pouco à alegria, eu era de tal modo sedenta que um quase nada já me tornava uma menina feliz.
    E as máscaras? Eu tinha medo, mas era um medo vital e necessário porque vinha de encontro à minha mais profunda suspeita de que o rosto humano também fosse uma espécie de máscara. À porta do meu pé de escada, se um mascarado falava comigo, eu de súbito entrava no contato indispensável com o meu mundo interior, que não era feito só de duendes e príncipes encantados, mas de pessoas com o seu mistério.Até meu susto com os mascarados, pois, era essencial para mim.
    [...]
    Mas houve um carnaval diferente dos outros. Tão milagroso que eu não conseguia acreditar que tanto me fosse dado, eu, que já aprendera a pedir pouco. É que a mãe de uma amiga minha resolvera fantasiar a filha e o nome da fantasia era no figurino Rosa. Para isso comprara folhas e folhas de papel crepom cor-de-rosa, com as quais, suponho, pretendia imitar as pétalas de uma flor. Boquiaberta, eu assistia pouco a pouco à fantasia tomando forma e se criando. Embora de pétalas o papel crepom nem de longe lembrasse, eu pensava seriamente que era uma das fantasias mais belas que jamais vira.
    [...]
    Mas por que exatamente aquele carnaval, o único de fantasia, teve que ser tão melancólico? De manhã cedo no domingo eu já estava de cabelos enrolados para que até de tarde o frisado pegasse bem. Mas os minutos não passavam, de tanta ansiedade. Enfim, enfim! chegaram três horas da tarde: com cuidado para não rasgar o papel, eu me vesti de rosa.
    Muitas coisas que me aconteceram tão piores que estas, eu já perdoei. No entanto essa não posso sequer entender agora: o jogo de dados de um destino é irracional? É impiedoso. Quando eu estava vestida de papel crepom todo armado, ainda com os cabelos enrolados e ainda sem batom e ruge – minha mãe de súbito piorou muito de saúde, um alvoroço repentino se criou em casa e mandaram-me comprar depressa um remédio na farmácia. Fui correndo vestida de rosa – mas o rosto ainda nu não tinha a máscara de moça que cobriria minha tão exposta vida infantil – fui correndo, correndo, perplexa, atônita, entre serpentinas, confetes e gritos de carnaval. Aalegria dos outros me espantava.
LISPECTOR, Clarice. Felicidade clandestina . Rio de Janeiro: Rocco, 1998. p. 25-28

A figura de linguagem predominante em “À porta do meu pé de escada, se um mascarado falava comigo” é:

Alternativas
Comentários
  • GABARITO : C

  • Em palavras breves, as figuras de linguagem são recursos expressivos utilizados com objetivo de gerar efeitos no discurso. Dentro do extenso grupo em que se arrolam esses recursos, existem quatro subdivisões: figura de palavra, figura de construção, figura de sintaxe e figura de som.

    Leiamos a frase:

     “À porta do meu pé de escada, se um mascarado falava comigo.”

    Na frase acima, há metáfora desgastada pelo uso à qual se recorre na falta de um termo específico ou em virtude do esquecimento deste. Dá-se o nome de catacrese. Exs.: embarcar num trem, azulejos verdes, enterrar farpa no dedo, calçar as luvas

    a) pleonasmo.

    Incorreto. É o emprego de palavras desnecessárias ao sentido. Há dois tipos: um a que se chama de vicioso, decorrente da ignorância da significação das palavras (p.ex. decapitar a cabeça, tornar a repetir, encarar de frente), e o literário, que serve à ênfase, ao vigor da expressão. Exs.:

    “Era como se todo o mundo que ele pisara com os pés, que vira com os seus olhos, que pegara com as suas mãos, se perdesse num instante.” (José Lins do Rego)

    “Meteram-me a mim e a mais trezentos companheiros (...) no estreito e infecto porão de um navio.” (Maria Firmina dos Reis)

    b) prosopopeia.

    Incorreto. É a atribuição de ações, qualidades ou sentimentos humanos a seres inanimados. Também é utilizada para emprestar vida e ação, não necessariamente humanas, a seres inanimados. Exs.:

    “O carrinho tem pouco serviço e passa mor parte do tempo no depósito.” (Monteiro Lobato)

    “Os sinos chamam para o amor.” (Mario Quintana);

    “(...) o sol, no poente, abre tapeçarias...” (Cruz e Sousa);

    “Um frio inteligente (...) percorria o jardim...” (Clarice Lispector)

    c) catacrese.

    Correto. Vide detalhamento acima;

    d) eufemismo.

    Incorreto. É o emprego de uma palavra ou expressão branda para se evitar o teor desagradável da mensagem. Ex.: “Agora que o meu pobre amigo jaz a dormir o derradeiro sono.” (Monteiro Lobato)

    e) metonímia.

    Incorreto. São relações reais de ordem qualitativa que levam a empregar metonimicamente uma palavra por outra, a designar uma coisa com o nome de outra. Ex.: ler Machado de Assis (o livro de Machado de Assis), beber o copo de cachaça (beber a cachaça).

    Letra C

  • Catacrese: normalmente se usa quando não há uma palavra (ou não é uma palavra muito conhecida) apropriada para indicar determinada coisa. Exemplos: a asa da xícara, o da mesa, o braço do sofá...