- ID
- 4042072
- Banca
- PROGESP- UFRR
- Órgão
- UFRR
- Ano
- 2015
- Provas
- Disciplina
- Português
- Assuntos
Eu não sabia nada de mim, como vim ao mundo, de onde tinha vindo. A origem: as origens. Meu passado, de alguma forma palpitando na vida dos meus antepassados, nada disso eu sabia. Minha infância, sem nenhum sinal da origem. É como esquecer uma criança dentro de um barco num rio deserto, até que uma das margens a acolhe. Anos depois, desconfiei: um dos gêmeos era meu pai. Domingas disfarçava quando eu tocava no assunto; deixava-me cheio de dúvida, talvez pensando que um dia eu pudesse descobrir a verdade. Eu sofria com o silêncio dela; nos nossos passeios, quando me acompanhava até o aviário da Matriz ou a beira do rio, começava uma frase mas logo interrompia e me olhava, aflita, vencida por uma fraqueza que coíbe a sinceridade. Muitas vezes ela ensaiou, mas titubeava, hesitava e acabava não dizendo. Quando eu fazia a pergunta, seu olhar logo me silenciava, e eram olhos tristes.
(...)
A área que contorna o porto estava silenciosa. Na calçada da rua dos Barés dormiam famílias do interior. Vi a loja fechada e apontei o depósito, onde Halim, encostado à janelinha, contara trechos de sua vida. Minha mãe quis sentar na mureta que dá para o rio escuro. Ficou calada por uns minutos, até a claridade sumir de vez. "Quando tu nasceste", ela disse, "seu Halim me ajudou, não quis me tirar da casa... Me prometeu que ias estudar. Tu eras neto dele, não ia te deixar na rua. Ele foi ao teu batismo, só ele me acompanhou. E ainda me pediu para escolher teu nome. Nael, ele me disse, o nome do pai dele. Eu achava um nome estranho, mas ele queria muito, eu deixei... Seu Halim. Parece que a vida se entortou também para ele... Eu sentia que o velho gostava muito de ti. Acho que gostava até dos filhos. Mas reclamava do Omar, dizia que o filho tinha sufocado a Zana." Senti suas mãos no meu braço; estavam suadas, frias. Ela me enlaçou, beijou meu rosto e abaixou a cabeça. Murmurou que gostava tanto de Yaqub... Desde o tempo em que brincavam, passeavam. Omar ficava enciumado quando via os dois juntos, no quarto, logo que o irmão voltou do Líbano." Com o Omar eu não queria... Uma noite ele entrou no meu quarto, fazendo aquela algazarra, bêbado, abrutalhado... Ele me agarrou com força de homem. Nunca me pediu perdão".
HATOUM, Milton. Dois Irmãos. São Paulo: Companhia das Letras, 2004. p. 54, 183-184.