Assassinato a 4 rodas
Matheus Pichonelli
Nas sociedades indígenas, a passagem para a vida adulta é um grande evento. Muitas vezes
os rituais são marcados por testes que envolvem dor e paciência, como acontece nas tribos
sateré-mawé, que vivem entre o Amazonas e o Pará. Ali, antes de se tornarem homens, os
indiozinhos são obrigados a colocar a mão numa luva tomada por formigas tucandeiras. Se
resistir 15 minutos, será homem.
Nas aldeias de concreto e asfalto, o batismo para a maioridade coincide com o momento em
que deixamos de ser bípedes e nos tornamos quadrúpedes, numa espécie de salto na linha
evolutiva. O ritual acontece entre os 17 e 18 anos, quando os anciãos nos levam para os
arrebaldes da cidade e emprestam as chaves dos seus carros. A instrução é mínima: engata
aqui, coloca o pé ali (quando já alcançamos os pedais), olha sempre para o retrovisor. Numa
conversão mágica entre líquidos arrancados do seio da terra (ou da camada de pré -sal) e a
atmosfera de gás carbônico, passamos finalmente a andar com as próprias rodas.
A sensação de liberdade é concluída meses depois, quando pagamos para que alguém nos
ensine educação no trânsito. Para alguns, é como tirar porte de arma, embora alguns prefiram
retirar o documento no mercado clandestino – porque uma das características do bom
quadrúpede é a pressa. Seja como for, a ideia de liberdade tem lá sua relação com as luvas
das tucandeiras. A diferença é que as picadas levam mais de 15 minutos: ―Se passar na
faculdade, compro um desses pra você‖. Ou: ―Empresto o meu desde que você passe de ano‖.
Ou: ―Compro, empresto, financio pra você, desde que você desfile na rua do vizinho.
Quando nos tornamos quadrúpedes, ganhamos acesso a eventos e lugares que nos pareciam
distantes até os 18 anos, como motéis, clubes e baladas. Já não precisamos combinar
horários de saída ou chegada. Nem esperar a reabertura do metrô às quatro e meia da manhã.
A liberdade de ir e vir é conquistada, dessa forma, por um novo contrato social, selado a partir
da benevolência (e patrocínio) dos pais. Aos 18 anos, aprendemos a ser livres antes mesmo
de saber lavar as próprias meias.
Quadrúpedes de carteirinha, passamos finalmente a atuar no papel que esperam de nós. Num
tempo de diálogos truncados, em que a polifonia de vozes na multidão anula os traços da
personalidade que grita, lotamos de adesivos e rodas rebaixadas os automóveis que falarão
por nós. Já não protestamos; buzinamos. Não corremos; aceleramos. Não agredimos; damos
cavalos de pau. Cada um a seu jeito, para se fazer notar na multidão que se espreme em
espaços cada vez mais reduzidos nas mesmas ruas, as mesmas zebras que protegem os
bípedes e suas limitadas ideias sobre liberdade.
Para ser quadrúpede, vale a pena deixar de comer, beber, viajar (ironia) para finan ciar o carro
zero. Há, do lado de fora, uma indústria automobilística que entope, com benefícios
governamentais, nossas ruas e povoam nossos fetiches: até 2014, haverá um carro para cada
4 habitantes no Brasil, embora, no mesmo País, apenas uma a cada duas pessoas tenha
acesso a esgoto. As ruas não se multiplicam com a mesma velocidade das esteiras rolantes,
mas a ideia de transporte coletivo é quase um retorno à idade média: por que colocar 60
bípedes num mesmo ônibus se eles podem se multiplicar, no conforto do ar condicionado, em
60 quadrúpedes solitários?
Na passagem pela maioridade, o ensinamento nada tem a ver com espaço, e sim com
conquista. As patas são quatro, mas o bem é individual – à imagem e semelhança de seus
donos. Tanto que, em alguns casos, já não se sabe quem é quem: ao deixar as quatro rodas,
há quem siga andando de quatro, como o caso do dono do Camaro que atropelou duas
mulheres e bateu em pelo menos dois carros na volta da balada, num saldo de quatro feridos
e um morto.
Veloz e furioso, só parou no último acidente, quando voou direto para a delegacia e foi
socorrido pelo papai, que bancou os 245 mil reais de fiança. Quadrúpede que é quadrúpede
não fica mais de três dias na prisão.
Disponível em: <www.cartacapital.com.br/sociedade/assassinato-a-4-rodas/> . Acesso em: 7 jul. 2012.
Para construir o ponto de vista sobre o tema, o autor do Texto 1