- ID
- 4215505
- Banca
- ADM&TEC
- Órgão
- Prefeitura de Palmeira dos Índios - AL
- Ano
- 2019
- Provas
- Disciplina
- Português
- Assuntos
ESQUEÇA A “LÓGICA” DA LÍNGUA!
Desde o surgimento da filosofia antiga na Grécia, circula na
cultura ocidental o mito de que a língua se organiza numa
gramática que seria um espelho da lógica que comanda os
processamentos da mente/espírito/alma/razão. Desse modo, a
gramática seria a “lógica” da língua, enquanto a lógica
descreveria a “gramática” do pensamento. Essa concepção de
língua e de mente como o espelho uma da outra, velha de 2.500
anos, se enraizou fundo e continua bastante viva até hoje,
especialmente entre as pessoas que se esforçam por defender a
“pureza” da língua contra os “abusos” e os “erros” cometidos
pelos próprios falantes. Essas pessoas costumam argumentar
que esses “abusos” e “erros” vão na contramão da “lógica da
língua” que, supostamente, governa a gramática. Por exemplo, no
enunciado “Descartes foi um dos filósofos que se ocupou do
caráter universal da linguagem”, o verbo ocupar deveria estar no
plural por motivos “lógicos”, o que se comprovaria com a
inversão dos termos: “Um dos filósofos que se ocuparam do
caráter universal da linguagem foi Descartes”. Não parece
lógico? Só que não...
O grande equívoco dessa abordagem tradicional é acreditar que
existe realmente uma identidade entre o funcionamento da
língua e o funcionamento da mente. Querer encontrar na língua a
mesma “lógica” que governa a mente é acreditar, em última
instância, na tese de que “o homem é um animal racional”,
formulada inicialmente por Aristóteles e repetida até hoje. Ora,
essa suposta racionalidade do ser humano foi posta em xeque
no início do século 20 pela psicanálise desenvolvida por Sigmund
Freud (1856-1939), que enfatizou o papel fundamental do
inconsciente no funcionamento da psique e nas ações concretas
– desdobramentos mais recentes da neurociência e de outros
campos de investigação empírica têm sugerido que mais de 90%
das operações do nosso cérebro estão fora do nível da
consciência.
Os estudos linguísticos contemporâneos de visada não
formalista também contestam a suposta identidade de lógica e
gramática, espantosamente ainda defendida por correntes
teóricas como o gerativismo chomskiano, herdeiro em linha reta
de Platão e Descartes, expoentes máximos do chamado
racionalismo filosófico. Seria até mesmo possível dizer que existe uma lógica de funcionamento das línguas, mas ela nada
tem a ver com a lógica formal clássica e seus silogismos,
categorias e teoremas. As investigações sobre a mudança
linguística têm demonstrado a interação complexa entre fatores
sociais (como a variação e o contato), fatores articulatórios (o
modo como pronunciamos os sons da língua) e fatores
cognitivos como a economia linguística, a gramaticalização, a
analogia, fatores que também incluem a metáfora, a metonímia,
a reanálise, a construcionalização, entre outros, comuns a todas
as línguas. É o uso em sociedade que comanda o funcionamento
da língua e responde pela mudança linguística. E a mudança é
intrínseca à própria natureza sociocognitiva das línguas: não
adianta ter raiva dela, como não adianta ter raiva da mudança
das estações. Sendo um trabalho coletivo, fruto do que vem
sendo chamado de cognição social, as mudanças que ocorrem
na língua não têm nada de “racionais”, no sentido de
“conscientes”, nem obedecem a uma mítica “gramática
universal”, cuja existência até hoje ninguém conseguiu provar.
Por fim, o grande linguista francês Émile Benveniste (1902-1976)
mostrou com a maior clareza possível que a lógica clássica,
fundada por Aristóteles, era inteiramente dependente da
gramática da língua grega. As fórmulas lógicas que
pretensamente revelavam como a mente funciona na verdade
revelam apenas como funcionava a língua grega falada pelo
grande filósofo. Se ele fosse falante de árabe, chinês, tupi ou
quicongo sem dúvida alguma sua lógica teria sido radicalmente
diferente. Assim, não é a lógica de funcionamento da mente que
nos leva a empregar a língua do modo como a empregamos,
mas exatamente o contrário: é a gramática de nossa língua
particular que nos faz acreditar que o pensamento se processa
de tal e qual modo. Importantes filósofos dos séculos 16 e 17, da
corrente chamada empirismo, como o inglês Locke e o francês
Condillac, refutaram essa suposta logicidade da língua que, no
fundo, admite a existência de “ideias inatas” e, mais no fundo
ainda, esconde a crença numa divindade que nos concedeu o
“dom” da linguagem, dom que nós só fazemos corromper e
destruir (haveria uma correspondência entre o pecado original e
a degeneração de uma “língua primordial” perfeita). Assim,
quando você topar com um uso inesperado, inovador, não torça
o nariz acreditando que ele fere a “lógica” da língua: ao contrário,
tente compreender por que os falantes, em trabalho coletivo
governado por fatores das mais diversas ordens, estão usando a
língua assim agora e não como se usava no ano passado. Afinal,
se as línguas fossem “lógicas”, elas não teriam por que mudar.
Só que as línguas mudam ou, melhor dizendo, nós, seres
humanos sociais, em nossas interações com a cultura e o
mundo, é que mudamos a língua que falamos.
(BAGNO, Marcos. Esqueça a “lógica” da língua. Disponível em:
http://bit.ly/2o9Tw7D)
Com base no texto 'ESQUEÇA A “LÓGICA” DA LÍNGUA!', leia as
afirmativas a seguir:
I. O autor refuta a tese da lógica clássica ao afirmar que, se
Aristóteles fosse falante de árabe, chinês, tupi ou quicongo sem
dúvida alguma sua lógica teria sido radicalmente diferente, pois a
“lógica” da língua grega falada pelo grande filósofo guardava suas
particularidades. Portanto, não é a lógica de funcionamento da
mente que nos leva a empregar a língua do modo como a
empregamos, mas exatamente o contrário: é a gramática de nossa
língua particular que nos faz acreditar que o pensamento se
processa de tal e qual modo.
II. Para defender seu ponto de vista, o autor optou por traçar um
percurso histórico, evidenciando o que levou a concepção de língua
e de mente como o espelho uma da outra à consolidação no
pensamento ocidental. Para isso, se utiliza também da ideia dos
filósofos Descartes, Locke e Condillac a fim de esclarecer que a
humanidade acredita numa divindade que nos concedeu o “dom”
da linguagem.
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