Leia o TEXTO 2 para responder a questão.
Estrelas e quimeras
A imaginação é razão de viver. Aciona a
voracidade e não tem fim. É um tapete que estendo ao
longo da escalinata da Piazza di Spagna a pretexto de
chegar às portas do Hades
Espécie de caixa que enfeixa segredos, sacia a
fome, cede pedaços da matéria capaz de me salvar. São
côdeas de pão, pedaços de vidro, bilhete amarfanhado,
tudo que não renega a origem humana.
Desde a infância exagero em prol de um mundo
nítido, transparente. Apelo para certos exercícios a fim de
que a voragem da invenção me dê alento. É um processo
sem interrupções. Já ao primeiro gole de café intuo haver
uma fórmula que, graças à sua combustão natural, aqueça
a imaginação, pague o suor coletivo com as moedas
ganhas no jogo de azar.
Atraio os tesouros para a casa sempre que refuto
as versões oficiais. Pois que, quando me ajusto ao fracasso,
corro o risco de atar-me ao penhasco à espera dos
pássaros que biquem meu fígado.
Sou quem depende das franquias alheias para
viver, que são as crueldades e as maravilhas inerentes da
loucura humana. Claro que tal condição afeta os efeitos da
realidade no meu cotidiano. Acato, porém, esse
transbordamento que me leva a atravessar a fronteira
moral que Dante estabeleceu para punir adversários.
A qualquer hora, em especial ao cair da noite, sou
propensa a identificar a imaginação. Graças a tal exercício
é fácil ver os Campos Elíseos, mais belos do que eu
supunha, com a mirada emprestada por Virgílio, ou pelo
próprio Eneias, em busca do pai, Anquises. Mas logo a
própria imaginação desfaz a visão do Hades. Sofro tal
golpe, mas consola-me perpetuar na minha memória os
seres amados que já partiram. Sobra-me ainda a ilusão de
esquivar-me do inferno, que o ilustre florentino concebeu.
De olhar a salvo o firmamento povoado de estrelas e
quimeras.
(PIÑON, Nélida. Uma furtiva lágrima. Rio de Janeiro: Record,
2019, p. 12-13.)