Leia a narrativa “O leão, o burro e o rato”, de Millôr Fernandes,
Um leão, um burro e um rato voltaram, afinal, da caçada
que haviam empreendido juntos1
e colocaram numa clareira
tudo que tinham caçado: dois veados, algumas perdizes, três
tatus, uma paca e muita caça menor. O leão sentou-se num
tronco e, com voz tonitruante que procurava inutilmente suavizar, berrou:
— Bem, agora que terminamos um magnífico dia de trabalho, descansemos aqui, camaradas, para a justa partilha
do nosso esforço conjunto. Compadre burro, por favor, você,
que é o mais sábio de nós três, com licença do compadre
rato, você, compadre burro, vai fazer a partilha desta caça
em três partes absolutamente iguais. Vamos, compadre rato,
até o rio, beber um pouco de água, deixando nosso grande
amigo burro em paz para deliberar.
Os dois se afastaram, foram até o rio, beberam água2
e
ficaram um tempo. Voltaram e verificaram que o burro tinha
feito um trabalho extremamente meticuloso, dividindo a caça
em três partes absolutamente iguais. Assim que viu os dois
voltando, o burro perguntou ao leão:
— Pronto, compadre leão, aí está: que acha da partilha?
O leão não disse uma palavra. Deu uma violenta patada
na nuca do burro, prostrando-o no chão, morto.
Sorrindo, o leão voltou-se para o rato e disse:
— Compadre rato, lamento muito, mas tenho a impressão
de que concorda em que não podíamos suportar a presença
de tamanha inaptidão e burrice. Desculpe eu ter perdido a paciência, mas não havia outra coisa a fazer. Há muito que eu
não suportava mais o compadre burro. Me faça um favor agora — divida você o bolo da caça, incluindo, por favor, o corpo
do compadre burro. Vou até o rio, novamente, deixando-lhe
calma para uma deliberação sensata.
Mal o leão se afastou, o rato não teve a menor dúvida.
Dividiu o monte de caça em dois: de um lado, toda a caça,
inclusive o corpo do burro. Do outro, apenas um ratinho cinza morto por acaso. O leão ainda não tinha chegado ao rio,
quando o rato o chamou:
— Compadre leão, está pronta a partilha!
O leão, vendo a caça dividida de maneira tão justa, não
pôde deixar de cumprimentar o rato:
— Maravilhoso, meu caro compadre, maravilhoso! Como
você chegou tão depressa a uma partilha tão certa?
E o rato respondeu:
— Muito simples. Estabeleci uma relação matemática entre seu tamanho e o meu — é claro que você precisa comer
muito mais. Tracei uma comparação entre a sua força e a
minha — é claro que você precisa de muito maior volume de
alimentação do que eu. Comparei, ponderadamente, sua posição na floresta com a minha — e, evidentemente, a partilha
só podia ser esta. Além do que, sou um intelectual, sou todo
espírito!
— Inacreditável, inacreditável! Que compreensão! Que
argúcia! — exclamou o leão, realmente admirado. — Olha,
juro que nunca tinha notado, em você, essa cultura. Como
você escondeu isso o tempo todo, e quem lhe ensinou tanta
sabedoria?
— Na verdade, leão, eu nunca soube nada. Se me perdoa um elogio fúnebre, se não se ofende, acabei de aprender
tudo agora mesmo, com o burro morto.
Moral: Só um burro tenta ficar com a parte do leão.
1
A conjugação de esforços tão heterogêneos na destruição do meio ambiente é coisa muito comum.
2
Enquanto estavam bebendo água, o leão reparou que o rato estava
sujando a água que ele bebia. Mas isso já é outra fábula.
(100 fábulas fabulosas, 2012.)
Uma moral para a narrativa de Millôr Fernandes em conformidade com uma fábula tradicional seria: