Texto
Entrevista concedida ao jornalista Júlio Lerner, em 1 de
fevereiro de 1977, para o programa “Panorama”, da TV
Cultura, de São Paulo.
De minha sala até o saguão dos estúdios tenho que
percorrer cerca de 150 metros. Estou tão aturdido com a
possibilidade de entrevistá-la que mal consigo me
organizar naquela curta caminhada. Talvez falar sobre “A
Paixão Segundo G.H”… Ou quem sabe sobre “A Maçã no
Escuro” e “Perto do Coração Selvagem”… Vou recordando
o que Clarice escreveu. Será que li tudo? Em apenas cinco
minutos consegui um estúdio para entrevistá-la.
São quatro e quinze da tarde e disponho de apenas meia
hora. Às cinco entra ao vivo o programa infantil e quinze
minutos antes terei de desocupar o estúdio. Estou
correndo e antes mesmo de vê-la a pressão do tempo
começa a me massacrar. Não terei condições de preparar
nada antes, nem mesmo conversar um pouco. Não poderei
sequer tentar criar um clima adequado para a entrevista.
Eu odeio a TV brasileira! Só meia hora para ouvir Clarice. O
pessoal da técnica foi novamente generoso e se empenhou
para conseguir essa brecha. Olho o relógio, não consigo me
organizar, estou correndo, olho novamente o relógio.
Estou desconcertado, atinjo o saguão dos estúdios e a vejo
ali, dez metros adiante, Clarice de pé ao lado de uma
amiga, perdida no meio do vaivém dos cenários
desmontados, de diversos equipamentos e de técnicos que
falam alto, no meio de um grande alvoroço.
Paro diante dela, estou um pouco ofegante, estendo-lhe a
mão e sou atravessado pelo olhar mais desprotegido que
um ser humano pode lançar a semelhante. Ela é frágil, ela
é tímida, e eu não tenho condições para explicar que o
problema do tempo elevou meus níveis de ansiedade.
Clarice me apresenta Olga Borelli, entramos e a conduzo
ao centro do pequeno estúdio. Peço para que ela sente
numa poltrona de couro de tonalidade café-com-leite.
Clarice segura apenas um maço de Hollywood e uma caixa
de fósforos, providencio um cinzeiro, os refletores
malditos são ligados. Clarice me olha. O olhar de Clarice
me interroga, só disponho de uma única câmera, o olhar
de Clarice suplica, Olga se ajeita numa lateral escurecida,
chega Miriam, a estagiária do programa e fica encolhida e
calada, o calor está ficando insuportável e o ar-condicionado não está ajustado, são apenas quatro e vinte,
Clarice tenta me dizer alguma coisa, mas não falo com ela,
preocupado em ajustar uma questão de iluminação, o
hálito da fornalha já nos atinge a todos, devemos ter agora
no estúdio uns 50 ou 60 graus, maldita TV, bendita TV do
terceiro mundo que me possibilita estar agora frente a
frente com ela, Clarice me olha melindrosa, assustada e
seu olhar me pede para que a tranquilize.
“OK, Júlio, tudo pronto”, a voz metálica vem da caixa dos
alto-falantes. Peço a toda equipe para sair, cabo man,
iluminador, assistente de estúdio, agradeço. Clarice
percebe que caiu numa arapuca e já não há como voltar
atrás. Peço silêncio e depois de uns dez segundos ecoa um
“gravando”.
Não conversamos antes e disponho apenas de 23 minutos.
Estou completamente desconcertado, fico um minuto em
silêncio fitando Clarice. Estou oco, vazio, não sei o que
dizer. Clarice me olha curiosa, mas vigilante, defendida.
Sou o senhor do castelo e — prepotente — guardo comigo
a chave desta prisão. Ninguém pode entrar ou sair sem
meu expresso consentimento. Todos devem se submeter à
minha autoritária vontade.
A fornalha arde, meu coração dispara, minha boca está
seca e debaixo destes tirânicos mil sóis sou o maior dos
tiranos. Começa a entrevista. A entrevista avança. Seus
olhos azuis-oceânicos revelam solidão e tristeza. Clarice
está nua, não há perdão, Clarice agora está encapotada,
ela se deixa agarrar, mas logo escapa, e volta, e me pega, e
me sugere o longe, o não dizível, depois se cala. E quando
nada mais espero, ela volta a falar. Faço uma
antientrevista, pausas, silêncios, Clarice agora está fugindo
para uma galáxia inabitada e inatingível, mas volta em
seguida e, tolerante, suporta toda a minha limitação.
Acho que ela vai se levantar a qualquer instante e me
dizer: “Chega!”. Clarice pressente que por trás de meu
sorriso aparentemente compreensivo e de minha fala
suave esconde-se um ser diabólico autodenominado
“repórter” e que quer possuir sua intimidade. Seu corpo
exprime receios, ela me afasta, mas de novo me atrai, suas
pernas se cruzam e se descruzam sem parar e telegrafam
que de repente ela poderá se levantar e partir.
Fonte: https://www.revistabula.com/503-a-ultima-entrevista-de-claricelispector, acesso em fevereiro de 2020
Imagine-se lendo o texto acima aos alunos, quais
informações devem ser destacadas a partir da
interpretação e da compreensão textuais?