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ID
5370496
Banca
FEPESE
Órgão
ABEPRO
Ano
2017
Provas
Disciplina
Português
Assuntos

Texto 3

Contra os iconoclastas


A mentira está no mundo. Ela está em nós e ao nosso redor. Não podemos fechar-lhe os olhos. Omnis homo mandax, diz um salmo (115, 11). Podemos traduzir: o homem é uma criatura capaz de mentir. Se não são todos os homens que escondem seus pensamentos com a língua, no caso de políticos e diplomatas a mentira integra o métier. Hermann Kesten expande a ideia como um leque: “Há categorias profissionais inteiras, sobre as quais o povo pensa de antemão, que obrigam seus representantes a mentir, como, por exemplo, teólogos, políticos, prostitutas, diplomatas, jornalistas, advogados, atores, juízes […]”. Palavras de um poeta?


Santo Agostinho, o primeiro a tornar a mentira objeto de reflexão filosófica e teológica, viu também em primeira mão o aspecto linguístico da mentira. Seria mentira o discurso figurado? Quod absit omnino (‘O que seria pura tolice’), disse Agostinho, ao refletir sobre a ideia de que a linguagem figurada em todas as suas formas talvez devesse ser considerada no âmbito da mentira. Não são muitos os que censuram explicitamente a metáfora (adotaremos o termo para todos os tipos de imagens linguísticas) de ser mentirosa. Mas implicitamente se ouve sempre essa censura. Em especial na ciência parece reinar um profundo ceticismo em relação à metáfora. Vez ou outra entram em cena iconoclastas arrogando que querem agora purificar a linguagem científica de todas as metáforas, e tudo ficaria bem, a verdade assomaria. Comparação deve ceder lugar à razão, dizem, e a ciência deve exprimir-se em sua linguagem. As metáforas apenas dissimulariam os pensamentos científicos, ou mesmo os deformariam. Um pesquisador sério escreve sem metáforas.


Mas eliminar as metáforas quer dizer não somente arrancar as flores do caminho da verdade, quer dizer também se privar do veículo que ajuda a acelerar o acesso à verdade. Uma palavra isolada jamais pode ser uma metáfora. “Fogo” é sempre a palavra normal cujo significado (lexical) conhecemos. Somente através de um contexto essa palavra pode se tornar uma metáfora, por exemplo, “fogo da paixão”. Se a metáfora necessariamente tem o contexto como condição de sua formação, não se aplica para ela a semântica da palavra isolada, mas a semântica da palavra no texto, com o jogo da determinação entre os polos do significado lexical e do significado textual. Essa tensão constitui o fascínio da metáfora.


Não há nenhuma razão para desconfiança ante as metáforas. Não se pode falar que a linguagem figurada seja como uma cobertura de flores, bela, mas inútil. Todas as palavras nos deveriam ser bem-vindas se queremos usá-las no texto, aquelas em contexto esperado, bem como aquelas em contexto inesperado, as metáforas. Não há mentira na metáfora, portanto.


WEINRICH, H. Linguística da mentira. Trad. de M. A. Barbosa e W. Heidermann. Florianópolis: Ed. da Ufsc, 2017. p. 13-15; 53-59. Adaptado.

Assinale a alternativa correta, considerando o texto 3.

Alternativas
Comentários
  • Gabarito: "A".

    A) O texto apresenta uma abordagem sobre a linguagem, com enfoque em seu aspecto figurado e contextual.

    CORRETO: diversas passagens do texto concordam com essa alternativa, como por exemplo a passagem "Somente através de um contexto essa palavra pode se tornar uma metáfora, por exemplo, “fogo da paixão”. Se a metáfora necessariamente tem o contexto como condição de sua formação, não se aplica para ela a semântica da palavra isolada, mas a semântica da palavra no texto, com o jogo da determinação entre os polos do significado lexical e do significado textual. Essa tensão constitui o fascínio da metáfora".

    B) Trata-se de um texto escrito em linguagem figurada e poética, o que se evidencia pelo uso recorrente de analogias e comparações.

    ERRADO: pela leitura do texto, esse não está apresentado numa linguagem figurada e, sim, linguagem denotativa; além do fato que a estrutura textual não está disposta em forma de uma poesia.

    C) Trata-se de um artigo de opinião, que expressa, de maneira fundamentada e objetiva, a visão do autor sobre o fenômeno religioso da iconoclastia.

    ERRADO: embora seja um artigo que expressa uma opinião dos seus atores, ele não aborda o "fenômeno religioso da iconoclastia" e, sim, o uso da metáfora na linguagem.

    D) O texto mescla o uso de exemplos e de descrições na construção da argumentação central, que é a crítica ao uso da linguagem técnica.

    ERRADO: o texto, conforme verifica-se na sua leitura, não dispõe de muitos exemplos e não possui nenhuma descrição. Ademais, ele não critica a linguagem técnica, mas, sim, a desconfiança que há no uso das metáforas na linguagem.

    E) Trata-se de um texto neutro e imparcial, em que o autor não expressa sua perspectiva pessoal.

    ERRADO: o texto não é neutro e imparcial, eis que ele é um artigo de opinião. Logo, sua neutralidade e imparcialidade foram afastadas.