Leia o excerto do “Sermão de Santo Antônio aos peixes” de
Antônio Vieira (1608-1697) para responder à questão.
A primeira cousa que me desedifica, peixes, de vós, é
que vos comeis uns aos outros. Grande escândalo é este,
mas a circunstância o faz ainda maior. Não só vos comeis
uns aos outros, senão que os grandes comem os pequenos.
[...] Santo Agostinho, que pregava aos homens, para encarecer a fealdade deste escândalo mostrou-lho nos peixes; e
eu, que prego aos peixes, para que vejais quão feio e abominável é, quero que o vejais nos homens. Olhai, peixes, lá do
mar para a terra. Não, não: não é isso o que vos digo. Vós
virais os olhos para os matos e para o sertão? Para cá, para
cá; para a cidade é que haveis de olhar. Cuidais que só os
tapuias se comem uns aos outros, muito maior açougue é
o de cá, muito mais se comem os brancos. Vedes vós todo
aquele bulir, vedes todo aquele andar, vedes aquele concorrer às praças e cruzar as ruas: vedes aquele subir e descer
as calçadas, vedes aquele entrar e sair sem quietação nem
sossego? Pois tudo aquilo é andarem buscando os homens
como hão de comer, e como se hão de comer.
[...]
Diz Deus que comem os homens não só o seu povo, senão declaradamente a sua plebe: Plebem meam, porque a
plebe e os plebeus, que são os mais pequenos, os que menos podem, e os que menos avultam na república, estes são
os comidos. E não só diz que os comem de qualquer modo,
senão que os engolem e os devoram: Qui devorant. Porque
os grandes que têm o mando das cidades e das províncias,
não se contenta a sua fome de comer os pequenos um por
um, poucos a poucos, senão que devoram e engolem os povos inteiros: Qui devorant plebem meam. E de que modo se
devoram e comem? Ut cibum panis: não como os outros comeres, senão como pão. A diferença que há entre o pão e os
outros comeres é que, para a carne, há dias de carne, e para
o peixe, dias de peixe, e para as frutas, diferentes meses no
ano; porém o pão é comer de todos os dias, que sempre e
continuadamente se come: e isto é o que padecem os pequenos. São o pão cotidiano dos grandes: e assim como pão
se come com tudo, assim com tudo, e em tudo são comidos
os miseráveis pequenos, não tendo, nem fazendo ofício em
que os não carreguem, em que os não multem, em que os
não defraudem, em que os não comam, traguem e devorem:
Qui devorant plebem meam, ut cibum panis. Parece-vos bem
isto, peixes?
(Antônio Vieira. Essencial, 2011.)
No sermão, Vieira critica