- ID
- 5438812
- Banca
- Instituto Consulplan
- Órgão
- Prefeitura de Colômbia - SP
- Ano
- 2021
- Provas
- Disciplina
- Português
- Assuntos
Texto para responder à questão.
Eu, Mwanito, o afinador de silêncios
A família, a escola, os outros, todos elegem em nós uma
centelha promissora, um território em que poderemos
brilhar. Uns nasceram para cantar, outros para dançar,
outros nasceram simplesmente para serem outros. Eu nasci
para estar calado. Minha única vocação é o silêncio. Foi meu
pai que me explicou: tenho inclinação para não falar, um
talento para apurar silêncios. Escrevo bem, silêncios, no
plural. Sim, porque não há um único silêncio. E todo o
silêncio é música em estado de gravidez.
Quando me viam, parado e recatado, no meu invisível
recanto, eu não estava pasmado. Estava desempenhado, de
alma e corpo ocupados: tecia os delicados fios com que se
fabrica a quietude. Eu era um afinador de silêncios.
— Venha, meu filho, venha ajudar-me a ficar calado.
Ao fim do dia, o velho se recostava na cadeira da
varanda. E era assim todas as noites: me sentava a seus pés,
olhando as estrelas no alto do escuro. Meu pai fechava os
olhos, a cabeça meneando para cá e para lá, como se um
compasso guiasse aquele sossego. Depois, ele inspirava
fundo e dizia:
— Este é o silêncio mais bonito que escutei até hoje.
Lhe agradeço, Mwanito.
Ficar devidamente calado requer anos de prática. Em
mim, era um dom natural, herança de algum antepassado.
Talvez fosse legado de minha mãe, Dona Dordalma, quem
podia ter a certeza? De tão calada, ela deixara de existir e
nem se notara que já não vivia entre nós, os vigentes
viventes.
— Você sabe, filho: há a calmaria dos cemitérios. Mas
o sossego desta varanda é diferente. Meu pai. A voz dele era
tão discreta que parecia apenas uma outra variedade de
silêncio. Tossicava e a tosse rouca dele, essa, era uma oculta
fala, sem palavras nem gramática.
Ao longe, se entrevia, na janela da casa anexa, uma
bruxuleante lamparina. Por certo, meu irmão nos espreitava.
Uma culpa me raspava o peito: eu era o escolhido, o único a
partilhar proximidades com o nosso progenitor.
(COUTO, Mia. Antes de nascer o mundo. São Paulo: Companhia das
Letras, 2009. Fragmento adaptado.)
Pode-se afirmar que, segundo o narrador do texto: