2.2.1. Crítica jurídica enquanto expressão do pluralismo e do humanismo dialético
O ponto de partida de Lyra Filho é a asserção de que, estando as posturas gnoseológicas do idealismo e do realismo superadas, deve ser recusada, por consequência, a tradicional redução distorcida e ideológica do Direito em jusnaturalismo e em positivismo legalista. Essa transposição favorece o surgimento da concepção dialética da sociedade e do Direito, porquanto é essencial que esse modelo dialético escolhido “(...) há de ser aberto e com a preocupação constante de encarar os fatos, dentro de uma perspectiva que enfatiza o devir (a transformação constante) e a totalidade (a ligação) de todos os segmentos da realidade, em função de conjunto”. Para que não se transforme em mais uma concepção ideológica ilusória e corrompida, essa nova filosofia jurídica deve ser embasada numa sociologia jurídica crítica que revele o caráter instrumental do Direito não só para o controle e a dominação, mas, sobretudo, para as mudanças sociais e para a libertação conscientizada. Assim, surge para Lyra Filho a necessidade de um projeto alternativo, sendo a tarefa primordial criar “(...) uma ciência jurídica sem dogmas, analítica e crítica ao mesmo tempo, (...cuja) base de toda dialetização eficaz há de ser uma ontologia dialética do Direito, sem eiva de idealismo intrínseco e sem compartimentos estanques entre a síntese filosófica e a análise da dialética social das normas, em ordenamentos plurais e conflitivos e sob o impulso da práxis libertadora”. É preciso notar, consoante Lyra Filho, que a principal “(...) inversão que se produz no pensa‐mento jurídico tradicional é tomar as normas como Direito e, depois, definir o Direito pelas normas, limitando estas às normas do Estado e da classe e grupos que dominam”. A tarefa de pensar e transformar a ordem existente obriga a ter presente que a estrutura social é atravessada pela coexistência conflitual e pelo pluralismo de normas jurídicas geradas pela divisão de classes entre dominantes e dominados. Daí a distinção fundamental que Lyra Filho faz entre reforma e revolução, movimentos de contestação e movimentos de transformação. É no bojo do pluralismo jurídico insurgente não estatal que se tenta dignificar o Direito dos oprimidos e dos espoliados. Evidentemente, o Direito não mais refletirá com exclusividade a superestrutura normativa do moderno sistema de dominação estatal, mas solidificará o processo normativo de base estrutural, produzido pelas cisões classistas e pela resistência dos grupos menos favorecidos. É nesse quadro de alargamento do Direito (abrangência das normas não estatais) que, segundo Lyra Filho, elimina‐se “(...) a noção mutiladora do Direito como veículo de dominação e, portanto, rompe o ‘bloqueio’ tradicional e ‘livra o Direito da caracterização como ideologia’. (Wolkmer, Antonio C. Introdução ao Pensamento Jurídico Crítico, 9ª edição. Editora Saraiva, 2015, p. 140-141).
WOLKMER aponta quatro vertentes da crítica jurídica: crítica sistêmico-estrutural; dialética, semiológica e
psicanalítica.
1) Crítica Jurídica de Perspectiva Sistêmico-Estrutural: temática da decisão de conflitos (Tércio Sampaio Ferraz Jr); remodelar o direito por contradiscursos de teor crítico (José Eduardo Faria). Não se pretende negar o modelo lógico-formal/ liberal-individualista, mas reconstruí-lo em novas bases racionais adequadas à práxis social para utilizá-lo como instrumento de desenvolvimento e transformação.
2) Crítica Jurídica de Perspectiva Dialética:
2.1. Crítica jurídica enquanto expressão do pluralismo e do humanismo dialético - caráter instrumental do Direito para as mudanças sociais e a libertação conscientizada, sob pena de se transformar em mais uma concepção ideológica corrompida (Roberto Lyra Filho).
2.2. Crítica jurídica enquanto instrumental político de transformação / libertação - consciência das correlações de forças e da dominação das formas de “saber-poder” que preexistem e condicionam o “jurídico” permite uma melhor compreensão do Direito dos opressores e dos oprimidos (Roberto A. R. de Aguiar); filosofia da libertação (Celso Luiz Ludwig) pauta a função do Direito de possibilitar o exercício efetivo dos ‘direitos sonegados’ e incorporar ‘novos direitos’ no que diz respeito à dimensão da ‘vida negada’. "Direito achado na rua".
2.3. Crítica jurídica enquanto normativismo fenomenológico - contempla o Direito a partir da realidade concreta, do conteúdo social e ideológico da normatividade e da articulação metodológica interdisciplinar (Luiz Fernando Coelho).
3) Crítica Jurídica de Perspectiva Semiológica: Direito como um discurso de significações que conjuga a conduta humana, a valoração e a prescrição normativa (Luis Alberto Warat). Articulação das formas discursivas do Direito com a perspectiva desmistificadora da filosofia da linguagem.
4) Crítica Jurídica de Perspectiva Psicanalítica: interpretar a intertextualidade do jurídico e do psicanalítico, realçando o simbólico representativo que domina a dogmática jurídica e o papel do texto legal na manipulação dos desejos inconscientes.
A questão em comento demanda
conhecimento da Teoria Crítica do Direito no Brasil.
Tal pensar, com expoentes como
Antônio Carlos Wolkmer e Roberto Lyra Filho se propõe, dentre outras
perspectivas, a:
I-
Observar que o Direito não serve apenas para
fixar marcos regulatórios de comportamento, podendo ser mecanismo de conquista
de direitos, transformações culturais e sociais;
II-
O Direito não está consolidado tão somente na
norma e na sanção, mas sim na liberdade e na transformação;
III-
O Direito combate injustiças e não está adstrito
à pura legalidade;
IV-
O Direito vai além da dogmática e do
Positivismo;
V-
O Direito não tem apenas o ponto de vista
estatal e a lei não é sua única fonte;
VI-
O Direito é plural e deve abraçar a diversidade;
VII-
O Direito não se concentra apenas nas fontes
estatais de produção e aplicação do Direito;
VIII-
O Direito deve evocar o humanismo e, não sendo
tão somente instrumento de controle, deve incitar o debate, o diálogo, a
dialética.
Feitas tais observações, vamos
comentar as alternativas da questão.
LETRA A- INCORRETA. A perspectiva
da psicanálise no Direito, embora muito rica, não foi a escolha da questão. O
Direito, por certo, deve ter ligações metajurídicas com outros saberes, mas a
questão em comento procura evocar a Teoria Crítica do Direito em si.
LETRA B- CORRETA. De fato, o
Direito deve evocar o potencial emancipatório e libertador das pessoas, tendo
verniz humanista, dialético, expressando a pluralidade, a diversidade, a alteridade,
o multiculturalismo.
LETRA C- INCORRETA. A perspectiva
sistêmico estrutural, prevista, por exemplo, em autores como Luhman, prega a
autopoiese do Direito, mas não é este o escopo da questão e dos estudos dos
autores mencionados no enunciado.
LETRA D- INCORRETA. A perspectiva
semiológica do Direito resgata a importância da linguagem no Direito, a
interferência disto na construção e interpretação do Direito, e remonta autores
como Wittgenstein. É uma perspectiva rica, mas não é o cobrado na questão.
LETRA E- INCORRETA. A junção do
Direito com conceitos morais e sua perspectiva filosófica, axiológica,
valorativa, são fundamentais, mas não é este o caminho traçado pela Teoria
Crítica do Direito.
GABARITO DO PROFESSOR: LETRA B