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ID
570031
Banca
FCC
Órgão
BACEN
Ano
2006
Provas
Disciplina
Português
Assuntos

                                   O segredo da acumulação primitiva neoliberal         

          Numa coluna publicada na Folha de São Paulo, o jornalista Elio Gaspari evocava o drama recente de um navio de crianças escravas errando ao largo da costa do Benin. Ao ler o texto – que era inspirado , o navio tornava-se uma metáfora de toda a África subsaariana: ilha à deriva, mistura de leprosário com campo de extermínio e reserva de mão-de-obra para migrações desesperadas.

           Elio Gaspari propunha um termo para designar esse povo móvel e desesperado: “os cidadãos descartáveis”. “Massas de homens e mulheres são arrancados de seus meios de subsistência e jogados no mercado de trabalho como proletários livres, desprotegidos e sem direitos.” São palavras de Marx, quando ele descreve a “acumulação primitiva”, ou seja, o processo que, no século XVI, criou as condições necessárias ao surgimento do capitalismo.

          Para que ganhássemos nosso mundo moderno, foi necessário, por exemplo, que os servos feudais fossem, à força, expropriados do pedacinho de terra que podiam cultivar para sustentar-se. Massas inteiras se encontraram, assim, paradoxalmente livres da servidão, mas obrigadas a vender seu trabalho para sobreviver

          Quatro ou cinco séculos mais tarde, essa violência não deveria ter acabado? Ao que parece, o século XX pediu uma espécie de segunda rodada, um ajuste: a criação de sujeitos descartáveis globais para um capitalismo enfim global.

          Simples continuação ou repetição? Talvez haja uma diferença – pequena, mas substancial – entre as massas do século XVI e os migrantes da globalização: as primeiras foram arrancadas de seus meios de subsistência, os segundos são expropriados de seu lugar pela violência da fome, por exemplo, mas quase sempre eles recebem em troca um devaneio. O protótipo poderia ser o prospecto que, um século atrás, seduzia os emigrantes europeus: sonhos de posse, de bem-estar e de ascensão social.

          As condições para que o capitalismo invente sua versão neoliberal são subjetivas. A expropriação que torna essa passagem possível é psicológica: necessita que sejamos arrancados nem tanto de nossos meios de subsistência, mas de nossa comunidade restrita, familiar e social, para sermos lançados numa procura infinita de status (e, hipoteticamente, de bem-estar) definido pelo acesso a bens e serviços. Arrancados de nós mesmos, deveremos querer ardentemente ser algo além do que somos.

          Depois da liberdade de vender nossa força de trabalho, a “acumulação primitiva” do  neoliberalismo nos oferece a liberdade de mudar e subir na vida, ou seja, de cultivar visões, sonhos e devaneios de aventura e sucesso. E, desde o prospecto do emigrante, a oferta vem se aprimorando. A partir dos anos 60, a televisão forneceu os sonhos para que o campo não só
devesse, mas quisesse, ir para a cidade.

          O requisito para que a máquina neoliberal funcione é mais refinado do que a venda dos mesmos sabonetes ou filmes para todos. Trata-se de alimentar um sonho infinito de perfectibilidade
e, portanto, uma insatisfação radical. Não é pouca coisa: é necessário promover e vender objetos e serviços por eles serem indispensáveis para alcançarmos nossos ideais de status, de bem-estar e de felicidade, mas, ao mesmo tempo, é preciso que toda satisfação conclusiva permaneça impossível.

          Para fomentar o sujeito neoliberal, o que importa não é lhe vender mais uma roupa, uma cortina ou uma lipoaspiração; é alimentar nele sonhos de elegância perfeita, casa perfeita e corpo perfeito. Pois esses sonhos perpetuam o sentimento de nossa inadequação e garantem, assim, que ele seja parte inalterável, definidora, da personalidade contemporânea.

          Melhor deixar como está. No entanto, a coisa não fica bem. Do meu pequeno observatório psicanalítico, parece que o permanente sentimento de inadequação faz do sujeito neoliberal
uma espécie de sonhador descartável, que corre atrás da miragem de sua felicidade como um trem descontrolado, sem condutor, acelerando progressivamente por inércia – até que os
trilhos não agüentem mais.

(Contardo Calligaris, Terra de ninguém. São Paulo: Publifolha, 2002)


O verbo indicado entre parênteses deverá ser obrigatoriamente flexionado numa forma do plural para preencher de modo correto a frase:

Alternativas
Comentários
  • CORRETA.

    Nunca me ...... (sobrevir), como agora, os sobressaltos que cada sonho traz consigo. 

    A frase está escrita de forma invertida, vejamos como fica:

    Os sobressaltos (...) nunca sobrevieram a mim, como agora.
  • GABARITO SIMPLIFICADO:
    a) Quanto mais interesses HOUVER (haver) em jogo, mais contundentes serão as iniciativas da máquina neoliberal. (VERBO IMPESSOAL, LOGO 3ª PESSOA do singular)

    b) A não SER (ser) pelas miragens que alimenta, muitas pessoas não conseguiriam sustentar o ânimo de viver. (LOCUÇÃO PREPOSITIVA - INVERIÁVEL)

    c) O que não lhes DEVE (dever) convir é abandonar todos esses sonhos que ajudam a viver. (Reescrevendo a oração fica mais clara: ABANDONAR TODOS OS SONHOS QUE AJUDAM A VIVER NÃO DEVE CONVIR-LHES( A ELES). (Sujeito verbo no infinitivo não acompanhado de determinante fica no singular.
     
    RESPOSTA CORRETA:
    d) Nunca me SOBREVIERAM (3ª pessoa do plural) (sobrevir), como agora, os sobressaltos que cada sonho traz consigo.
    (Façamos a clássica pergunta O QUE SOBREVIERAM? = OS SOBRESSALTOS...)
     
    e) DEVE-se (dever) a essas miragens o esforço com que muitos conduzem seu trabalho.
    (verbo intransitivo, logo “se” = índice de indeterminação do sujeito, que obriga o verbo a permanecer no singular)
  • Lembrando que: verbo é portanto, a palavra que exprime um fato (ação,estado ou fenêmeno) situando-o no tempo. ou seja resposta (d) exprime uma

    ação = Os sobressaltos