- ID
- 610111
- Banca
- CONSULPLAN
- Órgão
- Prefeitura de Resende - RJ
- Ano
- 2010
- Provas
- Disciplina
- Português
- Assuntos
O cajueiro
O cajueiro já devia ser velho quando nasci. Ele vive nas mais antigas recordações de minha infância, belo, imenso, no
alto do morro, atrás de casa. Agora vem uma carta dizendo que ele caiu.
Eu me lembro de outro cajueiro que era menor e morreu há muito mais tempo. Eu me lembro dos pés de pinha, do
cajá-manga, da pequena touceira de espadas-de-são-jorge e da alta saboneteira que era nossa alegria e a cobiça de toda a
meninada do bairro porque fornecia centenas de bolas pretas para o jogo de gude. Lembro-me da tamareira, e de tantos
arbustos e folhagens coloridas, lembro-me da parreira que cobria o caramanchão, e dos canteiros de flores humildes,
beijos, violetas. Tudo sumira, mas o grande pé de fruta-pão ao lado da casa e o imenso cajueiro lá no alto eram como
árvores sagradas protegendo a família. Cada menino que ia crescendo ia aprendendo o jeito de seu tronco, a cica de seu
fruto, o lugar melhor para apoiar o pé e subir pelo cajueiro acima, ver de lá o telhado das casas do outro lado e os morros
além, sentir o leve balanceio na brisa da tarde.
No último verão ainda o vi; estava como sempre carregado de frutos amarelos, trêmulo de sanhaços. Chovera; mas
assim mesmo fiz questão de que Caribé subisse o morro para vê-lo de perto, como quem apresenta a um amigo de outras
terras um parente muito querido.
A carta de minha irmã mais moça diz que ele caiu numa tarde de ventania, num fragor tremendo pela ribanceira
abaixo, e caiu meio de lado, como se não quisesse quebrar o telhado de nossa velha casa. Diz que passou o dia abatida,
pensando em nossa mãe, em nosso pai, em nossos irmãos que já morreram. Diz que seus filhos pequenos se assustaram;
mas depois foram brincar nos galhos tombados.
Foi agora, em setembro. Estava carregado de flores.
(Rubem Braga, Cem crônicas escolhidas, Rio, José Olímpio, 1956, pp. 320-22)
Há uma infinidade de metáforas constituídas por palavras que denotam ações, atitudes ou sentimentos próprios do homem, mas aplicadas a seres ou coisas inanimadas. Tal recurso ocorre no trecho a seguir: