- ID
- 711037
- Banca
- CESGRANRIO
- Órgão
- Caixa
- Ano
- 2012
- Provas
- Disciplina
- Português
- Assuntos
A palavra
Freud costumava dizer que os escritores precederam
os psicanalistas na descoberta do inconsciente.
Tudo porque literatura e psicanálise têm um
profundo elo em comum: a palavra.
Já me perguntei algumas vezes como é que uma
pessoa que tem dificuldade com a palavra consegue
externar suas fantasias e carências durante uma terapia.
Consultas são um refinado exercício de comunicação.
Se relacionamentos amorosos fracassam
por falhas na comunicação, creio que a relação terapêutica
também poderá naufragar diante da impossibilidade
de o paciente se fazer entender.
Estou lendo um belo livro de uma autora que,
além de poeta, é psicanalista, Sandra Niskier Flanzer.
E o livro se chama justamente “a palavra", assim, em
minúsculas e salientando o verbo contido no substantivo.
Lavrar: revolver e sulcar a terra, prepará-la para
o cultivo.
Se eu tenho um Deus, e tenho alguns, a palavra
é certamente um deles. Um Deus feminino, porém
não menos dominador. Ela, a palavra, foi determinante
na minha trajetória não só profissional, mas existencial.
Só cheguei a algum lugar nessa vida por me
expressar com clareza, algo que muitos consideram
fácil, mas fácil é escrever com afetação. A clareza
exige simplicidade, foco, precisão e generosidade. A
pessoa que nos ouve e que nos lê não é obrigada a
ter uma bola de cristal para descobrir o que queremos
dizer. Falar e escrever sem necessidade de tradução
ou legenda: eis um dom que é preciso desenvolver
todos os dias por aqueles que apreciam viver num
mundo com menos obstáculo.
A palavra, que ferramenta.
É uma pena que haja tamanha displicência em
relação ao seu uso. Poucos se dão conta de que ela
é a chave que abre as portas mais emperradas, que
ela facilita negociações, encurta caminhos, cria laços,
aproxima as pessoas. Tanta gente nasce e morre
sem dialogar com a vida. Contam coisas, falam por
falar, mas não conversam, não usam a palavra como
elemento de troca. Encantam-se pelo som da própria
voz e, nessa onda narcísica, qualquer palavra lhes
serve.
Mas não. Não serve qualquer uma.
A palavra exata é um pequeno diamante. Embeleza
tudo: o convívio, o poema, o amor. Quando
a palavra não tem serventia alguma, o silêncio mantém-se
no posto daquele que melhor fala por nós.
Em terapia – voltemos ao assunto inicial – temos
que nos apresentar sem defesas, relatar impressões
do passado, tornar públicas nossas aflições mais secretas, perder o pudor diante das nossas fraquezas,
ser honestos de uma forma quase violenta, tudo em
busca de uma “absolvição" que nos permita viver sem
arrastar tantas correntes. Como atingir o ponto nevrálgico
das nossas dores sem o bisturi certeiro da
palavra? É através dela que a gente se cura.
MEDEIROS, Martha. A palavra. Revista O Globo. 18 set. 2011.