Nunca pude entender a conversação que tive com uma senhora, há muitos
anos... Este começo, evidentemente, não é meu, mas de autor célebre, o que
não impede que podia ser de toda gente. Há sempre uma pessoa que nunca
pôde entender a conversação que teve com uma senhora, há muitos anos.
05 As mulheres costumam ter conversas estranhas, que só entendemos pela metade, ou
nada, se for não em dobro, o que é outra forma de engano.
No meu caso, ela telefonou pedindo que fosse correndo apagar um incêndio em
sua rua. Saltei da cama, nem sei se calcei os chinelos, e voei para o lugar indicado.
Apesar de noite alta, o trânsito estava engarrafado, devia haver uma festa importante,
10 homenagem a rei ou presidente estrangeiro, imagino. Fiz tudo para chegar o mais
depressa possível, e, ao chegar, não localizei o incêndio. É mais adiante, disse a
mulher, do alto do 9° andar. Onde? Mais, mais adiante. E apontava com o braço na
direção do infinito.
Mas a rua não acaba nesta quadra? perguntei. Não. A rua continuava
15 indefinidamente, e o dedo apontado, e eu sem saber, e ela pedindo urgência, dizendo
que o fogo lavrava sempre. Realmente, nunca pude entender.
ANDRADE, C. D. de. Incêndio: Poesia e prosa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1988. p. 1270.
O fato de o narrador sequer citar o nome do “autor célebre” põe em dúvida a sua celebridade.