SóProvas


ID
1155838
Banca
FJPF
Órgão
CONAB
Ano
2006
Provas
Disciplina
Português
Assuntos

            A pior explicação [para o resultado do referendo sobre a proibição da comercialização de armas de fogo realizado recentemente no país] me parece ser a que divide o “não” e o “sim” entre bandidos e mocinhos. O “não” é o partido da bala, o “sim” é o partido da paz; o “não” defende o direito de matar, o “sim” é pela vida; o “não” é a opção pela barbárie, o “sim” é a escolha da civilização e coisas do gênero.
            A explicação é maniqueísta na medida em que divide o mundo em bons e maus. É presunçosa quando coloca seu defensor do lado dos bons. É elitista e arrogante quando desrespeita a opinião de 60 milhões de brasileiros, reduzindo-os a partidários do mal ou, no mínimo, a idiotas enganados e manipulados por um grupo maquiavélico de fabricantes e comerciantes de armas.
            Creio haver certa concordância entre analistas sobre o fato de que a força da campanha do “não” consistiu em enfatizar dois pontos, o direito individual à legítima defesa e a crítica ao fracasso das políticas públicas de segurança, isto é, ao não-cumprimento pelo Estado do dever de proteger os cidadãos.
            Sem entrar na discussão substantiva do tema, eu diria que a surpresa do resultado do referendo provém exatamente do fato de que tais argumento tenham encontrado recepção tão positiva. Houve seguramente fatores tópicos que afetaram os resultados, como a tradição gaúcha de uso de armas, as necessidades de defesa das populações de fronteira. Mas eles não explicam a vitória generalizada do “não”.
            A surpresa vem, sobretudo, do eco encontrado pela defesa de um direito civil clássico, a proteção da própria vida. Pesquisa de opinião pública na região metropolitana do Rio de Janeiro, em 1997, revelou muito baixa consciência de direitos, sobretudo políticos e civis. Do total de entrevistados, 57% não conseguiram mencionar nem um direito sequer. Apenas 2% mencionaram direitos políticos e 12% direitos civis. A situação só melhorava um pouco em relação aos direitos sociais, reconhecidos por 26% dos entrevistados.
            O referendo veio mostrar que, colocados diante de um problema concreto de direitos, os eleitores identificaram com clareza um direito civil clássico. É sintomático também que, na pesquisa, a consciência de direitos variava na proporção direta da escolaridade. O “não” predominou exatamente entre os mais educados.
            Pode-se alegar que se trata propriamente de um direito clássico, isto é, de um liberalismo do século 19. Mas, em nossa tradição estatista e patrimonial, desenvolver a consciência de direitos individuais, mesmo com um século de atraso, é, sem dúvida, uma novidade e mesmo um progresso
            O progresso do outro argumento não foi surpresa. Nossa tradição sempre atribuiu ao Estado a tarefa de resolver tudo, inclusive o problema da segurança (nesse ponto, aliás, ela não diverge da tradição do Estado gendarme). É o óbvio ululante que nossos governos, nos três níveis de administração, com ou sem contingenciamento de verbas, têm falhado miseravelmente em proteger o cidadão. Impedir que o cidadão decida se vai ou não comprar uma arma quando o governo não consegue defendê-lo, restringir um direito ao mesmo tempo que não se cumpre um dever - eis a combinação explosiva que me parece ter levado 60 milhões a votar pelo “não”, concorde-se ou não com a decisão.
            Não por acaso, em Diadema, onde a prefeitura executa há cinco anos, antes do Estatuto do Desarmamento, uma política eficiente de segurança, o “sim” venceu, embora por pequena margem.


(CARVALHO, José Murilo de. Folha de São Paulo: 30 / 10 / 2005.)


Reescreveram-se os trechos abaixo, alterando-se apenas a colocação do pronome átono:

I - “Pode-se alegar que se trata propriamente de um direito clássico” / Pode alegar-se que se trata propriamente de um direito clássico.
II - “o governo não consegue defendê-lo” / o governo não o consegue defender.
III - “ao mesmo tempo que não se cumpre um dever” / ao mesmo tempo que não cumpre-se um dever.
IV - “eis a combinação explosiva que me parece ter levado 60 milhões a votar pelo ‘não’” / eis a combinação explosiva que parece ter levado-me 60 milhões a votar pelo “não”.

Estão de acordo com as normas descritas nas gramáticas as alterações realizadas em:

Alternativas
Comentários
  • Na frase 1 há uma locução verbal no início da frase. Só cabe uma ênclise em relação ao verbo auxiliar ou uma ênclise em relação ao verbo principal.

    Na frase 2 também há uma locução verbal. Nesse caso preciduda por uma partícula atrativa de sentido negativo, o que permite próclise em relação ao verbo auxiliar ou ênclise em relação ao verbo principal. 

    Na frase 3 a presença da partícula atrativa de sentido negativo não permite outra posição do pronome oblíquo átono além da próclise.

    Na frase 4 o pronome relativo não permite outra posição do pronome oblíquo átono além da próclise. 

  • GAB: A

    I E II ESTÃO CORRETAS.

  • Com verbos infinitivos impessoais, a colocação pronominal é facultativa. Por isso a I está correta.

  • A posição do pronome oblíquo átono (me, te, se, lhe, vos, o[s], a[s], etc.) pode ser distintamente três: próclise (antes do verbo), mesóclise (entre o radical e a desinência verbal) e ênclise (após o verbo). Analisemos as alternativas.

    I - “Pode-se alegar que se trata propriamente de um direito clássico” / Pode alegar-se que se trata propriamente de um direito clássico.

    Correto. A ênclise após infinitivo impessoal é sempre bem acolhida;

    II - “o governo não consegue defendê-lo” / o governo não o consegue defender.

    Correto. Outra oportuna colocação, embora rara entre os brasileiros, acha-se em Moderna Gramática Portuguesa, de Bechara, gramático que leciona ser possível o pronome átono vir antes da negação. Exs.: Ele me não disse;

    III - “ao mesmo tempo que não se cumpre um dever” / ao mesmo tempo que não cumpre-se um dever.

    Incorreto. Apenas a próclise é legítima;

    IV - “eis a combinação explosiva que me parece ter levado 60 milhões a votar pelo ‘não’” / eis a combinação explosiva que parece ter levado-me 60 milhões a votar pelo “não”.

    Incorreto. Não se aceita ênclise após verbo no particípio.

    Letra A