- ID
- 1278292
- Banca
- IBAM
- Órgão
- Prefeitura de São Bernardo do Campo - SP
- Ano
- 2012
- Provas
- Disciplina
- Português
- Assuntos
VAMOS QUEIMAR OS DICIONÁRIOS
Quando a gente pensa que já viu  tudo,  não viu.  Faz algum  tempo,  dentro do horroroso politicamente correto  que me  parece  tão  incorreto,  resolveram  castrar,  limpar,  arrumar  livros de Monteiro  Lobato,  acusando-o de  preconceito  racial,  pois  criou,  entre  outras,  a  deliciosa  personagem  da  cozinheira  Tia  Nastácia,  que,  junto  com  Emília e outros do Sítio do Picapau Amarelo, encheu de alegria minha  infância.
Se  formos  atrás  disso,  boa  parte  da  literatura  mundial  deve  ser  deletada  ou  "arrumada".  Primeiro,  vamos  deletar  a  palavra  "negro"  quando  se  refere  à  raça  e  pessoas,  embora  tenhamos  uma  banda  Raça  Negra,  grupos de  teatro Negro e  incontáveis oficinas,  açougues,  borracharias  "do Negrão",  como  "do Alemão"  "do  Portuga"  ou  "do  Turco".  Vamos  deletar  as  palavras.  Quem  sabe,  vamos  ficar  mudos,  porque  ao  mal-  humorado  essencial,  e  de  alma  pequena,  qualquer  uma  pode  ser  motivo  de  escândalo.  Depende  da  disposição com que acordou,  ou do  lado de onde sopram os ventos do seu próprio preconceito.
Embora meus  antepassados  tivessem  vindo  ao  Brasil  em  1825,  portanto  sendo  eu  de muitas  gerações de  brasileiros  tão  brasileiros  quanto  os  de  todas  as  demais  origens,  na  escola  havia  também  a  turminha  que  nos achacava  com  refrãos  como  "Alemão batata come queijo com  barata".  Nem por  isso nos odiamos,  nos  desprezamos.  Eram  coisas  infantis,  sem  consistência.  O que  vemos hoje quer mudar a  cara  do  país,  ou da  cultura do pais,  e não tem nada de  inocente.
Agora,  de  novo  para  meu  incorrigível  assombro,  em  um  lugar  deste  vasto,  belo,  contraditório  país  que  a  gente  tanto  ama,  desejam  sustar  a  circulação  do  Dicionário  Houaiss,  porque  no  verbete  "cigano"  consta  também  o uso  pejorativo  - que,  diga-se de  passagem,  não  foi  inventado  por Houaiss,  mas era  ou  é  uso de  alguns  falantes  brasileiros,  que o  autor meramente,  como de  sua  obrigação,  registrou.  Ora,  para  tentar um  empreendimento desse  vulto,  como  suspender  um  dicionário  de  tal  peso  e  envergadura,  seria  preciso  um  profundo  e  preciso  conhecimento  de  lingüística,  de  lexicografia,  uma  formação  sólida  sobre  o  que  são  dicionários e como são feitos.
O dicionarista não  inventa,  não acusa nem elogia,  deve ser imparcial - porque é apenas alguém que  registra  os fatos da  língua,  normalmente da  língua-padrão,  embora haja dicionários de dialetos,  de gírias,  de termos  técnicos etc.  Então,  se no verbete "cigano" Houaiss colocou  também os modos pejorativos como a palavra é  ou  foi  empregada,  criticá-lo  por  isso  é  uma  tolice  sem  tamanho,  que,  se  não  cuidarmos,  atingirá  outros  termos  em  outros  dicionários,  com  esse  olhar  rancoroso.  Vamos  nos  informar,  antes  de  falar.  Vamos  estudar,  antes  de criticar.  Vamos  ver em  que  terreno  estamos  pisando,  antes  de  atacar obras  literárias  ou  científicas  com  o  azedume  de  nossos  preconceitos  e  da  nossa  pequenez  ou  implicâncias  infundadas.  Há  coisas muito mais  importantes  a  fazer  neste  país,  como  estimular o  cuidado  com  a  educação,  melhorar  o  atendimento à saúde,  promover e preservar a dignidade de todos nós.
Ou,  numa mistura maligna de arrogância e  ignorância - talvez simplesmente porque não  temos nada melhor  a  fazer -,  vamos deletar as palavras que nos  incomodam,  os costumes que nos  irritam,  as pessoas que  nos  atrapalham e,  quem sabe,  iniciar uma campanha de queima de  livros. 
Compilado de artigo de Lya Luft, Revista Veja, edição 2260,  14 de março de 2012.
 
Analise os  itens abaixo.
I.  “ ...  arrumar  livros  de  Monteiro  Lobato”  -   arrumá-los. 
II.  “ Primeiro,  vamos deletar a  palavra  ‘negro” ' -  Primeiro,  vamos deletá-lo. 
III.  “ ...  alguém  que  registra  os  fatos  da  língua” -  alguém que registra-as. 
IV.  “ ...  iniciar  uma  campanha  de  queima  de  livros”  -  iniciá-la.
Observando-se  as  regras  de  colocação  pronominal,  os  termos em  itálico substituem  adequadamente os fragmentos sublinhados em: