SóProvas


ID
1371208
Banca
FUNCAB
Órgão
SEFAZ-BA
Ano
2014
Provas
Disciplina
Português
Assuntos

Vestibular de verdade era no meu tempo. Já estou chegando, ou já cheguei, à altura da vida em que tudo de bom era no meu tempo; meu e dos outros coroas. Acho inadmissível e mesmo chocante (no sentido antigo) um coroa não ser reacionário. Somos uma força histórica de grande valor. Se não agíssemos com o vigor necessário - evidentemente o condizente com a nossa condição provecta tudo sairia fora de controle, mais do que já está. O vestibular, é claro, jamais voltará ao que era outrora e talvez até desapareça, mas julgo necessário falar do antigo às novas gerações e lembrá-lo às minhas coevas (ao dicionário outra vez; domingo, dia de exercício).

O vestibular de Direito a que me submeti, na velha Faculdade de Direito da Bahia, tinha só quatro matérias: português, latim, francês ou inglês e sociologia, sendo que esta não constava dos currículos do curso secundário e a gente tinha que se virar por fora. Nada de cruzinhas, múltipla escolha ou matérias que não interessassem diretamente à carreira. Tudo escrito tão ruybarbosianamente quanto possível, com citações decoradas , preferivelmente . Os textos em latim eram As Catilinárias ou a Eneida, e das quais até hoje sei o comecinho.

Havia provas escritas e orais. A escrita já dava nervosismo, da oral muitos não se recuperaram inteiramente, pela vida afora. Tirava-se o ponto (sorteava-se o assunto) e partia-se para o martírio, insuperável por qualquer esporte radical desta juventude de hoje. A oral de latim era particularmente espetacular, porque se juntava uma multidão, para assistir à performance do saudoso mestre de Direito Romano Evandro Baltazar de Silveira. Franzino, sempre de colete e olhar vulpino (dicionário, dicionário), o mestre não perdoava.
- Traduza aí “quousque tandem, Catilina, [abutere] patientia nostra” - dizia ele ao entanguido vestibulando.

- Catilina,quanta paciência tens?" - retrucava o infeliz.

Era o bastante para o mestre se levantar, pôr as mãos sobre o estômago, olhar para a platéia como quem pede solidariedade e dar uma carreirinha em direção à porta da sala.

-Ai, minha barriga! - exclamava ele. - Deus, ó Deus, que fiz eu para ouvir tamanha asnice? Que pecados cometi, que ofensas Vos dirigi? Salvai essa alma de alimária, Senhor meu Pai!

Pode-se imaginar o resto do exame. [...] Comigo, a coisa foi um pouco melhor, eu falava um latinzinho e ele me deu seis, nota do mais alto coturno em seu elenco.

O maior público das provas orais era o que já tinha ouvido falar alguma coisa do candidato e vinha vê-lo “dar um show” . Eu dei show de português e inglês. O de português até que foi moleza, em certo sentido. O professor José Lima, de pé e tomando um cafezinho, me dirigiu as seguintes palavras aladas:
- Dou-lhe dez, se o senhor me disser qual é o sujeito da primeira oração do Hino Nacional!

- " As margens plácidas'' - respondi

instantaneamente e o mestre quase deixa cair a xícara.

- Por que não é indeterminado “ouviram,etc''?

- Porque o “as” de “as margens plácidas” não é craseado. Quem ouviu foram as margens plácidas. É uma anástrofe, entre as muitas que existem no Hino. “Nem teme quem te adora a própria morte” : sujeito: “quem te adora” . Se pusermos na ordem direta...

- Chega! - berrou ele. - Dez! Vá para a glória!
A Bahia será sempre a Bahia!

RIBEIRO, João Ubaldo. Jornal Grande Bahia-, 12 jun. 2013

Em relação à narrativa apresentada, a leitura atenta revela ser improcedente o seguinte comentário:

Alternativas
Comentários
  • Alguém pode esclarecer-me o motivo da alternativa "c" ser o gabarito correto?

  • A questão pergunta o comentário improcedente,  isto é, aquele que diverge das ideias do texto. Vejamos:

    a)  O texto é uma anedota, história curta, que conta parte da vida do autor, com alguns traços de humor como: "Ai, minha barriga! ... Deus, ó Deus, que fiz eu para ouvir tamanha asnice?" (referindo-se ao professor mestre de Direito Romano);

    b) O texto é escrito em primeira pessoa, como pode-se constatar em "Já estou chegando, ou já cheguei...", "mas julgo necessário falar...";

    c) Ele não repudia o uso de formas populares de dizer, muito pelo contrário, ele até usa: "... meu e dos outros coroas", "... um coroa não ser reacionário";

    d) Sugere enfaticamente a busca de compreensão pelo leitor quando usa palavras rebuscadas e diz para procurá-las no dicionário: "(ao dicionário outra vez...)";

    e) Tem cunho memorialista, pois lembra de seu passado, da forma de ingressar na faculdade em sua época.

    Portanto, resposta correta letra c).

  • É o contrário "o narrador repudia o uso de formas populares de dizer.". Ressalva formas popu.lares  ".. pôr as mãos sobre o estômago, olhar para a platéia como quem pede solidariedade e dar uma carreirinha em direção à porta da sala..."

  • Respondi o que era procedente e a questão pedia IMPROCEDENTE.

  • Podem ter certeza de que nenhum escritor brasileiro que se preze repudiaria o uso de formas populares de dizer. Acabaria com a verossimilhança. Sem falar do fracasso de venda.