- ID
 - 1505548
 - Banca
 - Gestão Concurso
 - Órgão
 - CEMIG-TELECOM
 - Ano
 - 2014
 - Provas
 - Disciplina
 - Português
 - Assuntos
 
INSTRUÇÃO: Este texto foi publicado na revista Carta Capital e se refere à questão.  
                                                                                                                     Vidas Secas 
    (1§) “Cabeça vazia é a oficina do diabo”, dizia a minha vó e a vó de todos os meus amigos de infância. Ter tempo demais, sem exatamente ter o que fazer, é a mola propulsora para as crianças pintarem as paredes com  pasta  de  dente,  plantarem  ovos  no  quintal  ou roubarem os cigarros do pai. 
    (2§)  Quando  adultos,  a  lei  e  a  ordem  nos impedem  de  tapear  o  tempo  com  os  velhos  recursos infantis,  e  por  isso  preferimos  tapeá-lo  jurando  não termos tempo para nada – ao menos para começar as tarefas adiadas desde a adolescência, como começar a ler Em Busca do Tempo Perdido. 
    (3§)  Mas  a  verdade  é  que  temos  tempo  de sobra. Temos tempo demais. Por isso estamos sempre conectados e em busca de  listas salvadoras sobre as dez  coisas  que  não  podemos  morrer  sem  fazer, conhecer, ouvir, lembrar ou esquecer. 
    (4§)  Tempos  atrás,  perdíamos  o  sono  e  nos deparávamos  à  noite  com  nosso  maior  inimigo:  o silêncio. Nada contra o silêncio, mas é ele, e nada mais, o maior  delator  de  nosso  fantasma mais  primitivo:  a consciência  de  que  temos  tempo  de  sombra,  temos tempo  demais,  e  não  sabemos  o  que  fazer  com  ele quando  é  noite,  estão  todos  dormindo  e  as  ruas, imersas  em  silêncio.  Diante  da  noite,  não  há  meio-termo  entre  matar  ou  morrer.  Antigamente assaltávamos  a  geladeira.  Ou  ligávamos  a  TV  para assistir ao Corujão. Ou escrevíamos cartas a amantes ou  desafetos  num  impulso  de  empolgação  que  se desmancharia nas primeiras luzes do dia e da razão. 
    (5§)  Hoje  vamos  à  internet.  Ali,  encontramos uma  legião de  insones armados com  facões e outros objetos pontiagudos para matar, estraçalhar, estripar o tempo  de  sobra.  O  tempo,  delatado  pelo  silêncio,  é nosso  maior  delator:  não  temos  nada  de  bom  para pensar. Por isso a paz não nos interessa. Ela nos leva ao  silêncio,  que  nos  leva  a  nós  mesmos,  e  esse encontro é não só indesejado: é insuportável. 
    (6§)  No  livro  Vidas  Secas, Graciliano Ramos descreve  uma  cena  em  que  Fabiano,  o  sertanejo  do romance, perde uma aposta para o Soldado Amarelo. Quando  percebe,  está  só,  sentado  na  sarjeta,  falido, bêbado e sem argumento para explicar em casa que o dinheiro para os mantimentos fora gasto em finalidades menos nobres. É a chegada ao inferno sem escaladas: em  silêncio,  Fabiano  busca  um  resquício  de  bom pensamento para se acalmar. Em vão, conclui: a vida seria mais suportável se houvesse ao menos uma boa lembrança. Ele não tinha. Sua vida era seca. Infrutífera. Vulnerável. Como ele. 
    (7§)  Em  tempos  de  secura  do  ar,  de reservatórios,  de  ideias  ou  desculpas  convincentes sobre  nossas  faltas,  eu  deveria  voltar  a  Graciliano Ramos,  mas  confesso  que  ando  ocupado  demais matando  o  tempo  que  juro  não  ter.  Todos  os  meus objetos  pontiagudos  estão  empenhados  a  matar  o tempo na internet, mais especificamente no Facebook, espécie de redutor do muro que antes separava o que sentíamos e o que pronunciávamos. 
    (8§) Com ele, não faz o menor sentido ter uma ideia e não dividi-la. Não compartilhá-la. Não  lançá-la para ser curtida. As ideias trancafiadas nos pesam: elas nos levam ao silêncio e às desconfianças, entre elas a de  que  não  são  originais,  não  valem  ser  ditas,  não valem a atenção, não valem uma nota, não valem um post.  Tarde  demais:  quando  pensamos  em  dizer,  já dissemos.  Em  conjunto,  essa  produção  industrial  de bobagens e reduções explícitas da realidade replicadas na  rede  nos  dão  a  sensação  de  preenchimento.  De tempo encurtado. De tempo útil. De vida bem vivida. 
    (9§)  Vai  ver  é  por  isso  que,  em  um  estudo recente  publicado  na  revista  Science,  as  pessoas diziam preferir causar dor a si mesmas do que passar 15 minutos em um quarto sem nada para fazer além de pensar.  No  experimento,  os  cientistas  das Universidades  da  Virgínia  e  de  Harvard  confinaram cerca de 200 pessoas em um quarto sem celular nem material para ler ou escrever e concluiu: mais de 57% das  pessoas  acharam  difícil  se  concentrar;  80% disseram  que  seus  pensamentos  vagaram;  metade achou a experiência desagradável e relataram ojeriza a essa prática. E, o mais estarrecedor: dois  terços, sem ter o que fazer diante do silêncio, resolveram se entreter dando choques em si mesmos – um deles estraçalhou o  próprio  tédio  com  190  choques.  Nada  poderia  ser mais revelador dos nossos dias. 
    (10§) Pois ontem passei uma hora e quarenta minutos parado num ponto de ônibus à espera de um ônibus  que  não  veio.  Passaria  uma  hora  e  quarenta minutos me  autoimolando  se  não  fosse meu  celular, que  tanto  relutei  a  conectar  à  internet.  Foram  quase cem minutos  contatando meio mundo  que me  desse uma palha de conversa, em aplicativos de mensagem instantânea, sobre a vida, sobre a seca, sobre o tempo que nos  resta e não  concede  tempo para nada, nem para  ler  os  livros  e  as  revistas  que  apodreciam  em conjunto na minha mochila. 
    (11§)  Se  quer  saber  a  dimensão  do  tempo, fique  um  minuto  em  silêncio,  diziam  os  sábios,  que talvez não suportassem passar 15 minutos sem conferir as  últimas mensagens  no  celular  a  apitar  nos  bolsos das  melhores  famílias.  Os  meus  vibram  e  apitam mesmo quando estão vazios. Sintomas da abstinência, manifestada  toda  vez  que  coloco  o  celular  para carregar  e  me  lembro  de  que  nossas  vidas  pedem barulho  e  transbordamento  o  tempo  todo. Elas  estão secas demais para suportar 15 minutos de silêncio. 
(www.cartacapital.com.br/cultura/vidas-secas-1-7824.html. Acesso: 10/08/2014.Adaptado.) 
 
O autor do texto cita o livro “Vidas Secas” com o objetivo de