SóProvas


ID
1506805
Banca
FCC
Órgão
TRT - 15ª Região (SP)
Ano
2015
Provas
Disciplina
Português
Assuntos

Eu pertenço a uma família de profetas après coup, post factum*, depois do gato morto, ou como melhor nome tenha em holandês. Por isso digo, e juro se necessário for, que toda a história desta lei de 13 de maio estava por mim prevista, tanto que na segunda-feira, antes mesmo dos debates, tratei de alforriar um molecote que tinha, pessoa de seus dezoito anos, mais ou menos. Alforriá-lo era nada; entendi que, perdido por mil, perdido por mil e quinhentos, e dei um jantar.

Neste jantar, a que meus amigos deram o nome de banquete, em falta de outro melhor, reuni umas cinco pessoas, conquanto as notícias dissessem trinta e três (anos de Cristo), no intuito de lhe dar um aspecto simbólico.

No golpe do meio (coup du milieu, mas eu prefiro falar a minha língua), levantei-me eu com a taça de champanha e declarei que acompanhando as ideias pregadas por Cristo, há dezoito séculos, restituía a liberdade ao meu escravo Pancrácio; que entendia que a nação inteira devia acompanhar as mesmas ideias e imitar o meu exemplo; finalmente, que a liberdade era um dom de Deus, que os homens não podiam roubar sem pecado.

Pancrácio, que estava à espreita, entrou na sala, como um furacão, e veio abraçar-me os pés. Um dos meus amigos (creio que é ainda meu sobrinho) pegou de outra taça, e pediu à ilustre assembleia que correspondesse ao ato que acabava de publicar, brindando ao primeiro dos cariocas. Ouvi cabisbaixo; fiz outro discurso agradecendo, e entreguei a carta ao molecote. Todos os lenços comovidos apanharam as lágrimas de admiração. Caí na cadeira e não vi mais nada. De noite, recebi muitos cartões. Creio que estão pintando o meu retrato, e suponho que a óleo.

No dia seguinte, chamei o Pancrácio e disse-lhe com rara franqueza:
-Tu és livre, podes ir para onde quiseres. Aqui tens casa amiga, já conhecida e tens mais um ordenado, um ordenado que...
-Oh! meu senhô! fico.
-...Um ordenado pequeno, mas que há de crescer. Tudo cresce neste mundo; tu cresceste imensamente. Quando nasceste, eras um pirralho deste tamanho; hoje estás mais alto que eu. Deixa ver; olha, és mais alto quatro dedos...
-Artura não qué dizê nada, não, senhô...
-Pequeno ordenado, repito, uns seis mil réis; mas é de grão em grão que a galinha enche o seu papo. Tu vales muito mais que uma galinha. Justamente. Pois seis mil réis. No fim de um ano, se andares bem, conta com oito. Oito ou sete.

Pancrácio aceitou tudo; aceitou até um peteleco que lhe dei no dia seguinte, por me não escovar bem as botas; efeitos da liberdade. Mas eu expliquei-lhe que o peteleco, sendo um impulso natural, não podia anular o direito civil adquirido por um título que lhe dei. Ele continuava livre, eu de mau humor; eram dois estados naturais, quase divinos.

Tudo compreendeu o meu bom Pancrácio; daí pra cá, tenho-lhe despedido alguns pontapés, um ou outro puxão de orelhas, e chamo-lhe besta quando lhe não chamo filho do diabo; cousas todas que ele recebe humildemente, e (Deus me perdoe!) creio que até alegre. [...]

*Literalmente, “depois do golpe", “depois do fato". (Adaptado de: ASSIS, Machado de. "Bons dias!", Gazeta de Notícias, 19 de maio de 1888)

O diálogo que se desenvolve a partir do 5 o parágrafo

Alternativas
Comentários
  • No dia seguinte, chamei o Pancrácio e disse-lhe com rara franqueza: 
    -Tu és livre, podes ir para onde quiseres. Aqui tens casa amiga, já conhecida e tens mais um ordenado, um ordenado que...
    -Oh! meu senhô! fico. 
    -...Um ordenado pequeno, mas que há de crescer. Tudo cresce neste mundo; tu cresceste imensamente. Quando nasceste, eras um pirralho deste tamanho; hoje estás mais alto que eu. Deixa ver; olha, és mais alto quatro dedos... 
    -Artura não qué dizê nada, não, senhô...
    -Pequeno ordenado, repito, uns seis mil réis; mas é de grão em grão que a galinha enche o seu papo. Tu vales muito mais que uma galinha. Justamente. Pois seis mil réis. No fim de um ano, se andares bem, conta com oito. Oito ou sete.

    ilustra, em frases como Artura não qué dizê nada, não, senhô...,a mentalidade a que estava condicionado o escravo, que chega a falar em detrimento de si próprio.


  • na letra A de fato ele faz uma analogia do futuro salário com a evolução na altura do escravo, mas claramente o texto está sendo irônico e a afirmativa não..


    A menos errada é a letra C

  • Alguém entendeu o erro da letra b)?


  • Também não entendi o erro na letra B. 


  • Sobre o erro da letra B)... Ele continua sendo comparado a uma "mercadoria"

  •  Na letra B, ocorre a extrapolação do texto. Apesar de a idéia remeter o escravo a mera "mercadoria", não há qualquer referência no texto.

    Na letra C, a expressão "Artura não quer dizê nada, não, senhô" remete a um condicionamento feito pelo escravo,  ao falar de si próprio. 

  • Erro da letra B

    "b) evidencia, em frases como Tu vales muito mais que uma galinha,o valor humano que passam a ter os que eram antes considerados simples mercadoria."

    O erro encontra-se na expressão "passam a ter", visto que a partir daquele momento os escravos estavam "deixando de ser" considerados simples mercadoria.

    Dessa forma, estaria correta a assertiva se fosse assim reescrita:

    "b) evidencia, em frases como Tu vales muito mais que uma galinha,o valor humano que TINHAM [e não passam a ter] os que eram antes considerados simples mercadoria."

    Espero ter conseguido passar meu pensamento.

    Abraço

  • Letra B) Quando ele disse: "Tu vales muito mais que uma galinha" Acredito que ele se referiu ao ordenado que era baixo, equivalente ao preço de uma galinha, mas que ele podia crescer e que o rapaz aí do texto valia mais que uma galinha.

    Letra C) Correta em razão da palavra "detrimento". Dá entender que ela ia ganhar um ordenado baixo, mas que ia crescer e que tudo crescia, inclusive ele cresceu e poderia ganhar mais que aquilo. O ex escravo responde: "Artura não qué dizê nada, não, senhô". Ou seja, o escravo falou em detrimento dele, contra ele mesmo que poderia ter dito que poderia ganhar mais já que era alto, mas ao contrário disse que altura não valia nada. Em suma, falou em detrimento da pessoa dele mesmo, contra ele, em desfavor dele e do salário dele. Talvez pela vontade de ficar e ganhar alguma coisa mesmo sendo pouco, já que não tinha pra onde ir e lá tinha casa e seu pequeno ordenado.

  • "

    c) ilustra, em frases como Artura não qué dizê nada, não, senhô...,a mentalidade a que estava condicionado o escravo, que chega a falar em detrimento de si próprio."

    Acho difícil concordar com isto... não vejo relação em ele dizer que a "altura é irrelevante" com em "mentalidade de escravo". 

  • Perfeito o comentário do Marcelo.
    Seria bom se as pessoas só comentassem o que tivessem certeza.

  • Algum Concurseiro, existe relação sim, pois basta observar que, quando o Senhor tenta fazer um elogio, ao dizer que o escravo cresceu, este simplesmente diz que isso não tem relevância ("...artura não qué dizê nada, não, senhô"), ou seja, rebate em prejuízo dele mesmo.  

  • Alguém consegue explicar o erro da letra A?