FACULTATIVO
Carlos Drummond de Andrade
1º Estatuto dos Funcionários, artigo 240: “O dia 28 de outubro será consagrado ao Servidor Público”
(com maiúsculas).
2º Então é feriado, raciocina o escriturário, que, justamente, tem um “programa” na pauta para essas
emergências. Não, responde-lhe o governo, que tem o programa de trabalhar; é consagrado, mas não é feriado.
3º É, não é, e o dia se passou na dureza, sem ponto facultativo. Saberão os groelandeses o que seja ponto
facultativo? (Os brasileiros sabem.) É descanso obrigatório, no duro. João Brandão, o de alma virginal, não
entendia assim, e lá um dia em que o Departamento Meteorológico anunciava: “céu azul, praia, ponto
facultativo”, não lhe apetecendo a casa nem as atividades lúdicas, deliberou usar de sua “faculdade” de assinar
o ponto no Instituto Nacional da Goiaba, que, como é do domínio público, estuda as _ _ _ _ _ _ _ da
inexistência dessa matéria-prima na composição das goiabadas.
4º Hoje deve haver menos gente por lá, conjeturou; ótimo, porque assim trabalho ___ vontade. Nossas
repartições atingiram tal grau de dinamismo e fragor, que chega a ser desejável o não comparecimento de 90
por cento dos funcionários, para que os restantes possam, na calma, produzir um bocadinho. E o inocente João
via no ponto facultativo essa virtude de afastar os menos diligentes, ou os mais futebolísticos, que cediam
lugar ___ turma dos “caxias”.
5º Encontrou cerradas ___ grandes portas de bronze, e nenhum sinal de vida nos arredores. Nenhum –
___ não ser aquele gato que se lambia ___ sombra de um tinhorão. Era, pela naturalidade da pose, dono do
jardim que orna a fachada do Instituto, mas – sentia-se pela ágata dos olhos – não possuía as chaves do prédio.
6º João Brandão tentou forçar as portas, mas as portas mantiveram-se surdas e nada facultativas. Correu a
telefonar de uma confeitaria para a residência do chefe, mas o chefe pescava em Mangaratiba, jogava pinguepongue
em Correias, estudava holandês com uma nativa, na Barra da Tijuca; o certo é que o telefone não
respondeu. João decidiu-se a penetrar no edifício galgando-lhe a fachada e utilizando vidraça que os serventes
sempre deixam aberta, na previsão de casos como esse, talvez. E começava a fazê-lo, com a _ _ _ _ _ _ _ _
calma dos Brandões, quando um vigia brotou na grama e puxou-o pela perna.
7º – Desce daí, moço. Então não está vendo que é dia de descansar.
8º – Perdão, é dia em que se pode ou não descansar, e eu estou com o expediente atrasado.
9º – Desce – repetiu o outro com tédio. – Olha que te encanam se você começar a virar macaco pela
parede acima.
10º – Mas, e o senhor porque então está vigiando, se é dia de descanso?
11º – Estou aqui porque a patroa me escaramuçou, dizendo que não quer vagabundo em casa. Não tenho
para onde ir, tá bem?
12º João Brandão aquiesceu, porque o outro, pelo tom de voz, parecia disposto a tudo, _ _ _ _ _ _ _ a
trabalhar de braço, a fim de impedir que ele trabalhasse de pena. Era como se o vigia lhe dissesse: “Veja bem,
está estragando meu dia. Então não sabe o que quer dizer facultativo?” João pensava saber, mas nesse
momento teve a intuição de que o verdadeiro sentido das palavras não está no dicionário; está na vida, no uso
que delas fazemos. Pensou na Constituição e nos milhares de leis que declaram obrigatórias milhares de
coisas, e essas coisas, na prática, são facultativas ou inexistentes. Retirou-se, digno, e foi decifrar palavras
cruzadas.