1 (...) a democracia moderna, regime que admite
conflitos, também gera um certo teor de conflito que
poderia não existir. Quando um cargo é colocado em
disputa, no âmbito público, aparecem candidatos. Ora,
não é óbvio que sempre haja divergências, justificando
candidaturas opostas. Mas é o que acontece. E, desde
que os partidos foram considerados pilares da
democracia representativa, a tendência deles é se
diferenciarem, oporem-se. Então, a democracia não se
limita a retratar divergências existentes na sociedade:
ela aprofunda algumas, acentua-as, até mesmo as
agrava.
2 Crítica parecida, por sinal, foi feita por
sucessivos inimigos da “democracia dos partidos", que
é a principal forma moderna de democracia – desde os
totalitários até o presidente francês de Gaulle e
pensadores marxistas não autoritários. Mas o regime
democrático também cumpre um papel mais
reconhecido, mais alardeado, que é a menina dos
olhos de quem o defende: ele aceita um teor de conflito
na sociedade. Admite como normal que haja tensões
entre pessoas ou grupos. Pela primeira vez na história
do mundo, desobriga os humanos de viver num todo
harmônico, equilibrado. Porque a harmonia é uma
empulhação. Na Ásia, o discurso confuciano,
assentado na ideia de que a sociedade se organiza
como uma família, leva a entender a discórdia como
traição. No Ocidente, a comparação do Estado a um
corpo harmônico e saudável autorizou considerar o
divergente um membro gangrenado ou doente, que
deve ser amputado. Quem não obedece ao amor do
príncipe não é apenas um divergente, uma pessoa livre
para pensar de outra forma: é um traidor, um ingrato,
um infame.
3 Diante dessa representação hipócrita das
relações sociais como amorosas e da conversão do
amor em autoritarismo – porque quem não retribui o
amor do ditador obedecendo-lhe em todas as coisas
atrai o castigo –, a democracia simplesmente deixa as
coisas acontecerem. Discorda? É um direito seu.
Haverá regras para dizer a discordância e, mesmo,
submetê-las ao voto. A democracia cria procedimentos
para garantir o direito de oposição – que também
reduzem o teor dos confrontos.
4 Isso quer dizer que o conflito político não pode
ser excessivo, e geralmente não o é. Primeiro, porque
a política é a substituição da guerra. Em vez de armas,
brigamos com votos. Eles não matam. O adversário
não é inimigo. Não está em jogo, ao contrário do que
pretendia Carl Schmidt, a extinção do outro. Pelo
menos não se quer sua eliminação física, como na
guerra, como com o inimigo. Segundo, porque a
política se dá com palavras, que manejam emoções
que se expressam no voto. Lembremos o que é “voto":
o significado deste termo se vê em “votos de
felicidade" ou de “feliz ano-novo". Votos são desejos. Expressamos nosso desejo em palavras, as do debate
político, elaborando a decisão de votar em Fulano ou
Beltrano.
5 Assim, a democracia representativa de partidos
gera necessariamente conflitos, mas não os deixa
transbordar para a forma bélica. Ela exige um certo
teor de conflito, mas não excessivo. Não vive sem
conflitos, mas morre se o conflito se exacerbar.
(RIBEIRO, Renato Janine. Rev. Filosofia: set., 2014, p. 82.)
Nos enunciados: “não é óbvio que sempre haja divergências” (§ 1) e “Haverá regras para dizer a discordância” (§ 3), pode-se substituir o verbo “haver”, sem infringir norma de concordância verbal, por, respectivamente: