A Áustria entrou para a história da inteligência do século
20 como fonte de gênios − Sigmund Freud, o criador da
psicanálise, e o pintor expressionista Egon Schiele são alguns
deles. Em outra face, menos vistosa, foi também um dos berços
mentais do nazismo. Numa perspectiva mais amena, vastas
regiões do país são conhecidas pela sua beleza inóspita, altas
montanhas, desfiladeiros e precipícios onde a neve e o verde
competem, sob a proteção de hospedarias pitorescas, para
atrair turistas ao som da música típica do Tirol.
Lá viveu, também, Thomas Bernhard (1931-1989), um
dos mais agressivos escritores do século passado − e alguém
que, radicado na Áustria desde criança, dedicou sua vida a falar
mal do país, a ponto de tornar esse mal-estar um dos pontos
centrais de sua arte. Um dos itens de seu testamento foi a
proibição expressa de que peças suas fossem representadas e
seus textos inéditos fossem publicados no país − o mesmo país
que, hoje, subsidia a tradução de seus livros para o resto do
mundo. Podemos nos perguntar como um projeto aparentemente
tão limitado − que um leigo creditaria a uma mera
expressão de ressentimento confessional − possa de fato se
transformar em grande literatura. Em livros como O náufrago,
Árvores abatidas e Extinção, um narrador exasperado e
aparentemente sem rumo, que se realiza em frases a um tempo
irresistíveis e intermináveis, vai como que destruindo a golpes
de medida impaciência qualquer possibilidade de remissão
humana.
Um exemplo: “Num hotel do centro de Viena, cidade que
sempre tratou pensadores e artistas com a maior falta de consideração
e desfaçatez possíveis e que poderia com certeza ser
chamada de o grande cemitério de fantasias e das ideias,
porque dilapidou, desperdiçou e aniquilou um número mil vezes
maior de gênios do que aqueles aos quais de fato emprestou
fama e renome mundial, foi encontrado morto um homem que,
com absoluta clareza de pensamento, deixou registrado num
bilhete o verdadeiro motivo de seu suicídio, bilhete que, então,
prendeu ao paletó." O trecho é de um dos textos que compõem
O imitador de vozes.
Distinta de suas narrativas mais conhecidas, a obra
mantém intactas a linguagem e a verve de Thomas Bernhard.
Há um humor sombrio em todas as páginas, mas nada se reduz
a uma anedota − o leitor ri de algo que não consegue controlar
ou definir.
Este meticuloso painel do desespero se compõe de
breves relatos aparentemente jornalísticos, casos curiosos ou
inexplicáveis. O narrador dessas histórias, em que não há
quase nada de onírico ou alegórico, frequentemente é uma
representação coletiva: “chamou-nos a atenção", “conhecemos
um homem". Esse “nós", que nunca se apresenta, é a
representação de um coro, uma voz coletiva, o temível “senso
comum" − ou a voz da Áustria, que Thomas Bernhard
transformou numa província asfixiante e opressiva e numa das
obras mais desconcertantes da literatura ocidental.
Sem prejuízo da correção e do sentido, o elemento em destaque pode ser substituído pelo que se encontra entre parênteses em: