Arquimedes, o bom repórter
Faz parte do meu ofício inventar. Mentir, sem
qualquer consideração teológica. Preencher as
páginas em branco, esforçando-me por criar heróis
mesquinhos e sublimes. Um ofício que se funde com
as adversidades do cotidiano e que, pautado por uma
estética insubordinada, comporta todas as escalas
morais, afugenta os ideários uniformizadores.
A literatura brota de todos os homens, de
todas as épocas. Sua ambígua natureza determina
que os escritores integrem uma raça fadada a
exceder-se. Seus membros, como uma seita, vivem
na franja e no âmago da realidade, que constrange e
ilumina ao mesmo tempo. E sem a qual a criação
fenece. A arte dos escritores arregimenta a sucata e o
sublime, o que se oxida em meio aos horrores, o que
se regenera sob o impulso dos suspiros de amor.
Apalpa a matéria secreta que sangra e aloja-se nos
porões da alma.
Há muito sei que a escrita não poupa o
escritor. E que, ao ser um martírio diário, coloca-o a
serviço do real. E enquanto este mero exercício de
acumular palavras, de dar-lhes sentido, for um ato de
fé no humano, a literatura seguirá sendo protagonista
do enigma que envolve vida e morte. Uma arte que
geme, emite sinais, desenha signos, e que constitui
uma salvaguarda civilizadora perante a barbárie. Em
cujas páginas batalha-se pelo provável entendimento
entre seres e situações intoleráveis. Como se por
meio de certos recursos estéticos fosse possível
conciliar antagonismos, praticar a tolerância, ativar
sentimentos, testar os limites da linguagem e da
ambiguidade da solidão humana. Salvar, enfim, os
seres trágicos que somos.
Não sei ser outra coisa que escritora. Já pelas
manhãs, enquanto crio, apalpo emoções benfazejas,
sentimentos instáveis, a substância sob o abrigo do
sinistro e da esperança. Tudo o que a realidade abusiva
refuta. É mister, contudo, combater os expurgos
estéticos para narrara história jamais contada.
A criação literária, porém, que se faz à sombra
da comunidade humana, aproximou-me sempre
daqueles cujas experiências pessoais eram vizinhas
no ato de escrever. Por isso, desde a infância, senti-me
irmanada aos jornalistas no uso das palavras e na
maneira de captar o mundo. E a tal ponto vinculada
aos jornais que nos vinham a casa, já pelas manhãs,
que disputava com o pai o privilégio de lê-los antes
dele. De aproximar-me destas páginas vivazes que,
arrancando-me da sonolência, proclamavam que a
vida despertara antes de mim. O drama humano não tinha instante para começar, precedera-me há horas,
há milênios.
PIÑON, Nélida. Aprendiz de Homero. Rio de Janeiro: Editora
Record, 2008, p. 81-82, fragmento.
O texto contém uma série de afirmações sobre a arte da criação literária. Da leitura atenta, pode-se depreender que está em desacordo com o texto a seguinte afirmação: