A língua que somos, a língua que podemos ser
(Eliane Brum)
A alemã Anja Saile é agente literária de
autores de língua portuguesa há mais de uma
década. Não é um trabalho muito fácil. Com vários
brasileiros no catálogo, ela depara-se com frequência
com a mesma resposta de editores europeus,
variando apenas na forma. O discurso da negativa
poderia ser resumido nesta frase: “O livro é bom, mas
não é suficientemente brasileiro". O que seria
“suficientemente brasileiro"?
Anja (pronuncia-se “Ânia") aprendeu a falar a
língua durante os anos em que viveu em Portugal (e é
impressionante como fala bem e escreve com
correção). Quando vem ao Brasil, acaba caminhando
demais porque o tamanho de São Paulo sempre a
surpreende e ela suspira de saudades da bicicleta
que a espera em Berlim. Anja assim interpreta a
demanda: “O Brasil é interessante quando
corresponde aos clichês europeus. É a Europa que
define como a cultura dos outros países deve ser para
ser interessante para ela. É muito irritante. As
editoras europeias nunca teriam essas exigências
em relação aos autores americanos, nunca".
Anja refere-se ao fato de que os escritores
americanos conquistaram o direito de ser universais
para a velha Europa e seu ranço colonizador― já dos
brasileiros exige-se uma espécie de selo de
autenticidade que seria dado pela “temática
brasileira". Como se sabe, não estamos sós nessa
xaropada. O desabafo de Anja, que nos vê de fora e
de dentro, ao mesmo tempo, me remeteu a uma
intervenção sobre a língua feita pelo escritor
moçambicano Mia Couto, na Conferência
Internacional de Literatura, em Estocolmo, na Suécia.
Ele disse:
— A África tem sido sujeita a sucessivos
processos de essencialização e folclorização, e muito
daquilo que se proclama como autenticamente
africano resulta de invenções feitas fora do
continente. Os escritores africanos sofreram durante
décadas a chamada prova de autenticidade: pedia-se
que seus textos traduzissem aquilo que se entendia
como sua verdadeira etnicidade. Os jovens autores africanos estão se libertando da “africanidade". Eles
são o que são sem que se necessite de proclamação.
Os escritores africanos desejam ser tão universais
como qualquer outro escritor do mundo. (...) Há
tantas Áfricas quanto escritores, e todos eles estão
reinventando continentes dentro de si mesmos.
[...]
— O mesmo processo que empobreceu o
meu continente está, afinal, castrando a nossa
condição comum e universal de contadores de
histórias. (...) O que fez a espécie humana sobreviver
não foi apenas a inteligência, mas a nossa
capacidade de produzir diversidade. Essa
diversidade está sendo negada nos dias de hoje por
um sistema que escolhe apenas por razões de lucro e
facilidade de sucesso. Os autores africanos que não
escrevem em inglês – e em especial os que escrevem
em língua portuguesa – moram na periferia da
periferia, lá onde a palavra tem de lutar para não ser
silêncio.
[...]
Talvez os indígenas sejam a melhor forma de
ilustrar essa miopia, forjada às vezes por ignorância,
em outras por interesses econômicos localizados em
suas terras. Parte da população e, o que é mais
chocante, dos governantes, espera que os indígenas
– todos eles – se comportem como aquilo que
acredita ser um índio. Portanto, com todos os clichês
do gênero. Neste caso, para muitos os índios não
seriam “suficientemente índios" para merecer um
lugar e para serem escutados como alguém que tem
algo a dizer.
Outra parte, que também inclui gente que
está no poder em todas as instâncias, do executivo ao
judiciário, finge que os indígenas não existem. Finge
tanto que quase acredita. Como não conhecem e,
pior que isso, nem mesmo percebem que é preciso
conhecer, porque para isso seria necessário não só
honestidade como inteligência, a extinção
progressiva só confirmaria uma ausência que já
construíram dentro de si.
[...]
Disponível em: <http://revistaepoca.globo.com/Sociedade/
eliane-brum/noticia/2012/01/lingua-que-somos-lingua-que-podemos-ser.html>
É uma marca de oralidade no texto: