Dei uma palestra em janeiro no Festival Literário Galle. Nos últimos dez anos, esse festival tornou-se um dos maiores destaques do circuito cultural do Sri Lanka. Neste ano, o evento criou festivais “de contato com as comunidades” em Kandy, na região montanhosa do país, e Jaffna, no norte.
Foi significativo o fato de o festival ter sido levado a Jaffna, capital da província do Norte. A brutal guerra civil entre os Tigres pela Libertação do Tamil Eelam e o Exército de Sri Lanka acabou há menos de sete anos. Muita coisa no Norte foi reconstruída, mas os fantasmas do conflito ainda assombram Jaffna, desde os edifícios marcados por buracos de balas até os milhares de civis mortos do conflito.
Contra esse pano de fundo, o festival criou um espaço de engajamento com uma larga variedade de ideias, de maneira que não acontece com frequência em um lugar como Jaffna. O evento foi aberto com uma discussão da literatura tâmil, que ajudou a moldar e definir a identidade tâmil.
Reconhecendo as sensibilidades envolvidas, os organizadores do festival promoveram a sessão na língua tâmil. Porém, fato notável, todos os palestrantes e muitos escritores tâmeis presentes na plateia fizeram objeção, insistindo no uso do inglês. “Não queremos falar apenas com nós mesmos”, disse um dos presentes.
É uma opinião que não encontro com frequência. “Falar consigo mesmo”, muitas vezes, infelizmente, parece ser o objetivo das políticas de identidade no Ocidente. Um bom exemplo disso é a moda atual de denunciar a “apropriação cultural”, que denota o uso por pessoas de uma cultura (especialmente pessoas de posição privilegiada) dos símbolos e ideias de outra cultura.
Essa noção já levou a casos bizarros, como grêmios estudantis que proibiram o uso do sombreiro (chapéu mexicano) ou as aulas de ioga. O problema é que a história da cultura é a história da apropriação. Não pode haver cultura sem que os povos emprestem, roubem e se apropriem de elementos uns dos outros.
A discussão sobre identidade que aconteceu em Jaffna foi diferente. Para os tâmeis presentes, a identidade não era uma barreira com a qual se proteger do resto do mundo, mas uma maneira de dialogar com esse mundo.
Chamou minha atenção igualmente a resposta do público em um evento realizado alguns dias antes em Colombo, a capital do Sri Lanka. Eu tinha sido entrevistado sobre o palco, num bate-papo que cobriu desde minha infância até meu senso de identidade, passando por questões de liberdade de expressão e censura.
Critiquei a política de identidade e expressei apoio ao direito de causar ofensa. Especificamente, defendi a revista satírica francesa “Charlie Hebdo” contra acusações de racismo.
Já discursei sobre temas semelhantes para plateias semelhantes na Europa e encarei críticas consideráveis. “O que lhe dá o direito de ofender outros?”, já me perguntaram. “A liberdade de expressão é acompanhada da obrigação de usá-la de modo responsável”, me disseram.
Em um debate no Reino Unido sobre as consequências do caso “Charlie Hebdo”, outro participante lamentou o fato de o debate ter ficado polarizado entre os que estavam a favor ou contra a liberdade de expressão. Não podemos simplesmente ser a favor ou contra a liberdade, ele argumentou: “É mais complicado que isso”.
Teria o palestrante apresentado o mesmo argumento 200 anos atrás, quando se debatia a abolição da escravidão? Será que ele teria dito “não podemos simplesmente ser a favor ou contra a abolição da escravidão. A liberdade é mais complicada que isso”?
Não precisei colocar essa pergunta à minha plateia em Colombo. As pessoas que ali estavam compreendiam implicitamente a importância da liberdade e, em especial, da liberdade de expressão. Mesmo as pessoas da plateia que eram críticas das charges publicadas pelo “Charlie Hebdo” defenderam o direito do semanário de publicá-las. [...]
Na realidade, desde o fim da guerra, o país assiste ao crescimento dos movimentos religiosos sectários. Por exemplo, surgiu uma vertente mais intolerante do budismo que tem como alvo não os tâmeis, mas os muçulmanos.
O islamismo também está mudando em Sri Lanka. Antes, era uma religião relativamente aberta, descontraída. Agora, porém, chamou minha atenção o grande número de mulheres usando a burca, algo que teria sido inimaginável duas décadas atrás. Parece que muitos muçulmanos de Sri Lanka foram ser operários em países do Golfo Pérsico e, quando voltaram, trouxeram na bagagem uma vertente mais intransigente do islamismo. [...]
Ao pedir que se proíbam a “apropriação cultural” e as ofensas, muitos adotam ideias sobre identidade, cultura e livre expressão que reforçam mais os sectários que aqueles que os contestam. Queremos uma sociedade mais aberta ou mais fechada? Esse é o xis da questão, quer seja em Colombo, Jaffna ou Londres.
(Kenan Malik. Jornal Gazeta do Povo, 27 fev. 2016)
A palavra “implicitamente”, sublinhada no texto, tem aí o sentido de: