SóProvas


ID
1890301
Banca
FUNCAB
Órgão
EMSERH
Ano
2016
Provas
Disciplina
Português
Assuntos

                            O embondeiro que sonhava pássaros

      Esse homem sempre vai ficar de sombra: nenhuma memória será bastante para lhe salvar do escuro. Em verdade, seu astro não era o Sol. Nem seu país não era a vida. Talvez, por razão disso, ele habitasse com cautela de um estranho. O vendedor de pássaros não tinha sequer o abrigo de um nome. Chamavam-lhe o passarinheiro.

      Todas manhãs ele passava nos bairros dos brancos carregando suas enormes gaiolas. Ele mesmo fabricava aquelas jaulas, de tão leve material que nem pareciam servir de prisão. Parecia eram gaiolas aladas, voláteis. Dentro delas, os pássaros esvoavam suas cores repentinas. À volta do vendedeiro, era uma nuvem de pios, tantos que faziam mexer as janelas:

      - Mãe, olha o homem dos passarinheiros!

      E os meninos inundavam as ruas. As alegrias se intercambiavam: a gritaria das aves e o chilreio das crianças. O homem puxava de uma muska e harmonicava sonâmbulas melodias. O mundo inteiro se fabulava.

      Por trás das cortinas, os colonos reprovavam aqueles abusos. Ensinavam suspeitas aos seus pequenos filhos - aquele preto quem era? Alguém conhecia recomendações dele? Quem autorizara aqueles pés descalços a sujarem o bairro? Não, não e não. O negro que voltasse ao seu devido lugar. Contudo, os pássaros tão encantantes que são - insistiam os meninos. Os pais se agravavam: estava dito.

      Mas aquela ordem pouco seria desempenhada.

      [...]

      O homem então se decidia a sair, juntar as suas raivas com os demais colonos. No clube, eles todos se aclamavam: era preciso acabar com as visitas do passarinheiro. Que a medida não podia ser de morte matada, nem coisa que ofendesse a vista das senhoras e seus filhos. 6 remédio, enfim, se haveria de pensar.

      No dia seguinte, o vendedor repetiu a sua alegre invasão. Afinal, os colonos ainda que hesitaram: aquele negro trazia aves de belezas jamais vistas. Ninguém podia resistir às suas cores, seus chilreios. Nem aquilo parecia coisa deste verídico mundo. O vendedor se anonimava, em humilde desaparecimento de si:

      - Esses são pássaros muito excelentes, desses com as asas todas de fora.

      Os portugueses se interrogavam: onde desencantava ele tão maravilhosas criaturas? onde, se eles tinham já desbravado os mais extensos matos?

      O vendedor se segredava, respondendo um riso. Os senhores receavam as suas próprias suspeições - teria aquele negro direito a ingressar num mundo onde eles careciam de acesso? Mas logo se aprontavam a diminuir-lhe os méritos: o tipo dormia nas árvores, em plena passarada. Eles se igualam aos bichos silvestres, concluíam.

      Fosse por desdenho dos grandes ou por glória dos pequenos, a verdade é que, aos pouco-poucos, o passarinheiro foi virando assunto no bairro do cimento. Sua presença foi enchendo durações, insuspeitos vazios. Conforme dele se comprava, as casas mais se repletavam de doces cantos. Aquela música se estranhava nos moradores, mostrando que aquele bairro não pertencia àquela terra. Afinal, os pássaros desautenticavam os residentes, estrangeirando-lhes? [...] O comerciante devia saber que seus passos descalços não cabiam naquelas ruas. Os brancos se inquietavam com aquela desobediência, acusando o tempo. [...]

      As crianças emigravam de sua condição, desdobrando-se em outras felizes existências. E todos se familiavam, parentes aparentes. [...]

      Os pais lhes queriam fechar o sonho, sua pequena e infinita alma. Surgiu o mando: a rua vos está proibida, vocês não saem mais. Correram-se as cortinas, as casas fecharam suas pálpebras.

COUTO, Mia. Cada homem é uma raça: contosl Mia Couto - 1ª ed. - São Paulo: Companhia das Letras, 2013. p.63 - 71. (Fragmento). 

Sobre o texto leia as afirmativas a seguir.

I. Mia Couto apresenta uma crítica ao estereótipo do negro, segregado pelos valores culturais que valorizam a cultura do colonizador.

II. O passarinheiro não é bem-vindo no espaço porque explora os pássaros, vendendo-os às crianças que se enganam com sua bondade.

III. A primeira vista, tem-se um passarinheiro, um homem que vende pássaros, um exilado no próprio território.

IV. O primeiro drama exposto no conto é o paradoxo da falta de identidade do vendedor de pássaros.

Está correto apenas o que se afirma em:

Alternativas
Comentários
  • II. O passarinheiro não é bem-vindo no espaço porque explora os pássaros, vendendo-os às crianças que se enganam com sua bondade. 

    Achei que esse item estivesse errado, pq entendi que a autora não se agradava das "jaulas", ou seja, ela fez uma crítica às gaiolas: "Todas manhãs ele passava nos bairros dos brancos carregando suas enormes gaiolas. Ele mesmo fabricava aquelas jaulas, de tão leve material que nem pareciam servir de prisão."

     Mas na rua que ele vendia os pássaros o que não agradava os moradores era o fato de o vendedor ser negro, e não o "passarinheiro" explorar as aves; acho que esse trecho demonstra o que quero dizer:

     "Por trás das cortinas, os colonos reprovavam aqueles abusos". - pode-se pensar que se trata do abuso aos passaros, mas na verdade é referente ao abuso do negro aos colonos por "invadir" a rua - "Ensinavam suspeitas aos seus pequenos filhos - aquele preto quem era? Alguém conhecia recomendações dele? Quem autorizara aqueles pés descalços a sujarem o bairro? Não, não e não. O negro que voltasse ao seu devido lugar. Contudo, os pássaros tão encantantes que são - insistiam os meninos. Os pais se agravavam: estava dito."    

    Enfim, marquei item D e errei..
    Em frente!

  • Já vi que essa banca é complicadíssima!

     

  • Sério?! Pelo amor de Deus! Para mim, os itens corretos seriam I e III. Não há paradoxo na falta de identidade dele! Isso é consequencia do preconceito sofrido pelo negro no período colonial, não era gente, não tinha identidade, era bicho. É explícito que o motivo do desagrado é ele ser um negro pobre num bairro de brancos, ricos e preconceituosos. Oo Sasporra desses colonizadores vieram explorar, desmatar e escravizar e, de acordo com o texto, não gostavam dele pq vendia passarinho?

  • Sei lá em, Douglas Freire muito doido esse seu raciocínio, mesmo assim, não há informações suficientes para inferir o ítem II.

  • Discordo desse item II. As crianças são atraídas pelos pássaros, por suas cores e " seus pios", não pela bondade do vendedor que até então é um desconhecido, um anônimo que figura apenas como "o passarinheiro" assim como referencia o item IV.

  • So queria que a banca colcasse na passagem do texto alguma coisa falando sobre o ítem II, isso é mais que uma "extrapolação" de interpretação. Inacreditável.

     

  • Em nenhum momento da leitura do texto supra consegui interpretar que o "O passarinheiro não é bem-vindo no espaço porque explora os pássaros, vendendo-os às crianças que se enganam com sua bondade.".

    No primeiro parágrafo, fica claro que falaremos de um desconhecido, alguém que vive a margem das relações sociais da época, alguém que "não tinha sequer o abrigo de um nome".

    O preconceito dos moradores daquela região, ao encontro do que já foi dito, é explicito na passagem "Por trás das cortinas, os colonos reprovavam aqueles abusos. Ensinavam suspeitas aos seus pequenos filhos - aquele preto quem era? Alguém conhecia recomendações dele? Quem autorizara aqueles pés descalços a sujarem o bairro? Não, não e não. O negro que voltasse ao seu devido lugar". Os abusos mencionados nesta passagem podem ser facilmente ligados à "invasão" do negro aquele lugar e sua ousadia de ali pisar, não que ele, o próprio protagonista, abusava, de fato, de alguém ou de alguma coisa.

    De outra forma, em contraste com o que foi afirmado pela banca, o que encantava os meninos eram os pássaros, havendo resistência das crianças ao próprio preconceito dos pais, passagem explicita no trecho "Contudo, os pássaros tão encantantes que são - insistiam os meninos. Os pais se agravavam: estava dito". Ou seja, os meninos queriam continuar vendo os pássaros, mas os pais negavam.

    Novamente, no excerto trazido nos últimos parágrafos dos texto diz que "fosse por desdenho dos grandes ou por glória dos pequenos, a verdade é que, aos pouco-poucos, o passarinheiro foi virando assunto no bairro do cimento'. Prova-se, mais uma vez, que havia um encanto dos meninos pelo passarinheiro".

    Em suma, uma interpretação feita muito além do exposto e, para mim, um passível de alteração de gabarito. Chega a ser um absurdo o que se traz na assertiva "II".

  • Depois de ver um enunciado da mesma banca, passo a afirmar que a questão foi mal feita, porquanto fica claro um sentido diverso da interpretação do texto na própria banca quando ela anuncia que "Ao mesmo tempo em que o narrador apresenta, através do discurso indireto livre, a reprovação dos moradores acerca da liberdade de o passarinheiro circular pelas ruas do bairro, também mostra o encantamento causado pela presença do passarinheiro e seus pássaros na vida das crianças da comunidade. Nessa perspectiva, esse contraste de opiniões, reprovação e encantamento, está marcado, no texto, pela palavra/expressão".

  • Depois de ver um enunciado da mesma banca, passo a afirmar que a questão foi mal feita, porquanto fica claro um sentido diverso da interpretação do texto na própria banca quando ela anuncia que "Ao mesmo tempo em que o narrador apresenta, através do discurso indireto livre, a reprovação dos moradores acerca da liberdade de o passarinheiro circular pelas ruas do bairro, também mostra o encantamento causado pela presença do passarinheiro e seus pássaros na vida das crianças da comunidade. Nessa perspectiva, esse contraste de opiniões, reprovação e encantamento, está marcado, no texto, pela palavra/expressão".

  • Banca desonesta.

  • concordo com a galera super extrapolado o item 2, porquanto, segundo a interpretação certa ao meu ver seria que rejeitavam o passarinheiro pela razão de ser negro nao por simplesmente vender passaros .... pf nee banquinha

  • Esse item II não tem base.