SóProvas


ID
1903477
Banca
FUNCAB
Órgão
SEGEP-MA
Ano
2016
Provas
Disciplina
Português
Assuntos

                                 A Repartição dos Pães

      Era sábado e estávamos convidados para o almoço de obrigação. Mas cada um de nós gostava demais de sábado para gastá-lo com quem não queríamos. Cada um fora alguma vez feliz e ficara com a marca do desejo. Eu, eu queria tudo. E nós ali presos, como se nosso trem tivesse descarrilado e fôssemos obrigados a pousar entre estranhos. Ninguém ali me queria, eu não queria a ninguém. Quanto a meu sábado - que fora da janela se balançava em acácias e sombras - eu preferia, a gastá-lo mal, fechá-la na mão dura, onde eu o amarfanhava como a um lenço. À espera do almoço, bebíamos sem prazer, à saúde do ressentimento: amanhã já seria domingo. Não é com você que eu quero, dizia nosso olhar sem umidade, e soprávamos devagar a fumaça do cigarro seco. A avareza de não repartir o sábado, ia pouco a pouco roendo e avançando como ferrugem, até que qualquer alegria seria um insulto à alegria maior.

      Só a dona da casa não parecia economizar o sábado para usá-lo numa quinta de noite. Ela, no entanto, cujo coração já conhecera outros sábados. Como pudera esquecer que se quer mais e mais? Não se impacientava sequer com o grupo heterogêneo, sonhador e resignado que na sua casa só esperava como pela hora do primeiro trem partir, qualquer trem - menos ficar naquela estação vazia, menos ter que refrear o cavalo que correria de coração batendo para outros, outros cavalos.

      Passamos afinal à sala para um almoço que não tinha a bênção da fome. E foi quando surpreendidos deparamos com a mesa. Não podia ser para nós...

      Era uma mesa para homens de boa-vontade. Quem seria o conviva realmente esperado e que não viera? Mas éramos nós mesmos. Então aquela mulher dava o melhor não importava a quem? E lavava contente os pés do primeiro estrangeiro. Constrangidos, olhávamos.

      A mesa fora coberta por uma solene abundância. Sobre a toalha branca amontoavam-se espigas de trigo. E maçãs vermelhas, enormes cenouras amarelas [...]. Os tomates eram redondos para ninguém: para o ar, para o redondo ar. Sábado era de quem viesse. E a laranja adoçaria a língua de quem primeiro chegasse.

      Junto do prato de cada mal-convidado, a mulher que lavava pés de estranhos pusera - mesmo sem nos eleger, mesmo sem nos amar - um ramo de trigo ou um cacho de rabanetes ardentes ou uma talhada vermelha de melancia com seus alegres caroços. Tudo cortado pela acidez espanhola que se adivinhava nos limões verdes. Nas bilhas estava o leite, como se tivesse atravessado com as cabras o deserto dos penhascos. Vinho, quase negro de tão pisado, estremecia em vasilhas de barro. Tudo diante de nós. Tudo limpo do retorcido desejo humano. Tudo como é, não como quiséramos. Só existindo, e todo. Assim como existe um campo. Assim como as montanhas. Assim como homens e mulheres, e não nós, os ávidos. Assim como um sábado. Assim como apenas existe. Existe.

      Em nome de nada, era hora de comer. Em nome de ninguém, era bom. Sem nenhum sonho. E nós pouco a pouco a par do dia, pouco a pouco anonimizados, crescendo, maiores, à altura da vida possível. Então, como fidalgos camponeses, aceitamos a mesa.

      Não havia holocausto: aquilo tudo queria tanto ser comido quanto nós queríamos comê-lo. Nada guardando para o dia seguinte, ali mesmo ofereci o que eu sentia àquilo que me fazia sentir. Era um viver que eu não pagara de antemão com o sofrimento da espera, fome que nasce quando a boca já está perto da comida. Porque agora estávamos com fome, fome inteira que abrigava o todo e as migalhas. [...]

      E não quero formar a vida porque a existência já existe. Existe como um chão onde nós todos avançamos. Sem uma palavra de amor. Sem uma palavra. Mas teu prazer entende o meu. Nós somos fortes e nós comemos.

      Pão é amor entre estranhos.

         LISPECTOR, Clarice. A legião estrangeira. Rio de Janeiro: Rocco, 1999.

Sobre o texto leia as afirmativas a seguir.

I. O conto começa em tom de mistério sem apontar sentimentos dos personagens acerca da ação que realizam.

II. Os convidados, além de seguirem o que manda a tradição, estabelecem uma relação de solicitude e aproximação entre si.

III. O sábado para a narradora é um dia de obrigação, que encerra em si, tudo que é peso, amarras e prisão. Além disso, o almoço não passa de um ritual que acarreta desconforto.

IV. Em meio a sentimentos negativos, ligados ao encontro da partilha efetuado ritualmente no sábado, apenas uma pessoa concebe-o de forma diferente, sacralizada: a dona da casa.

Está correto apenas o que se afirma em:

Alternativas
Comentários
  • III. "sábado para a narradora é um dia de obrigação" para mim estava errado, pois ela colocou que "cada um de nós gostava demais de sábado para gastá-lo com quem não queríamos"

  • concordo com o comentário da colega acima, já vi que a interpretação da banca é indecifrável,

     

  • Impossível a III estar correta. Essa banca coloca o que bem quer e entende como gabarito. 

  •  Era sábado e estávamos convidados para o almoço de obrigação. 

    Aqui está a resposta da III

  • Não é uma banca séria. Mas quem se submeter a um prova dessas tem o conforto de saber que é para todo mundo. Favorece ao chute e a respostas incosncientes, de forma que prejudica as pessoas que estudam e que se preparam. É uma caso a se pensar, viajar e gastar dinheiro para fazer uma prova de uma institução de baixima qualidade dessas.

  • Assim como os demais colegas, não concordo com a resposta da questão.

    Ao meu ver a resposta correta teria que ser a letra "e", embora a banca considere correta a letra "b".

    Mas vamos lá, farei comentários de acordo com minha interpretação.

    _______________________________

    I. (FALSA) O conto começa em tom de mistério sem apontar sentimentos dos personagens acerca da ação que realizam.

    Trechos do texto: "Mas cada um de nós".. "Cada um fora alguma vez feliz" .. "Ninguém ali me queria" .. "Eu não queria ninguém" .. "Bebíamos sem prazer .. à saúde do ressentimento" .. "não é com você que eu quero"..

    => Percebe-se que há mistério na medida em que não é possível determinar os indivíduos ali presentes. Todavia essa alternativa de fato é falsa, pois claramente aponta-se para sentimentos, mesmo que os personagens não sejam determinados: felicidade, desprezo, sensação, ódio etc.

    -------------------------------------------------

    II. (FALSA) Os convidados, além de seguirem o que manda a tradição, estabelecem uma relação de solicitude e aproximação entre si.

    Trechos do texto: "Não é com você que eu quero, dizia nosso olhar sem umidade..." ... "A avareza de não repartir o sábado, ia pouco a pouco roendo e avançando como ferrugem, até que qualquer alegria seria um insulto à alegria maior".

    => Percebe-se claramente que não há relação de solicitude e aproximação entre os convidados, além de que aparentemente não seguem nenhuma tradição.

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    III. (VERDADEIRA PARA A BANCA) O sábado para a narradora é um dia de obrigação, que encerra em si, tudo que é peso, amarras e prisão. Além disso, o almoço não passa de um ritual que acarreta desconforto.

    Trechos do texto: "Mas cada um de nós gostava demais do sábado para gastá-lo com quem não queríamos." ... "Quanto a meu sábado - que fora da janela se balançava em acácias e sombras - eu preferia, a gastá-lo mal, fechá-la na mão dura, onde eu o amarfanahva como um lenço."

    => Verifica-se claramente que o sábado para a narradora não é o dia de obrigação, embora estivesse em uma situação de aparente obrigação.

    -------------------------------------------------

    IV. (VERDADEIRA) Em meio a sentimentos negativos, ligados ao encontro da partilha efetuado ritualmente no sábado, apenas uma pessoa concebe-o de forma diferente, sacralizada: a dona da casa.

    => De fato, afirmativa com veracidade perceptível pois, em meio a sentimentos negativos, a dona de casa parecia viver aquele sábado naquelas circunstâncias de forma diferente, servindo com boa-vontade.

     

     

     

     

  • Pedro e Luan, vcs ja falaram tudo brothers... Não consigo concordar de jeito nenhum com este gabarito. Para mim tbem a resposta correta é a letra "E".

    A narradora falou claramente, logo no primeiro verso do primeiro parágrafo "... o almoço de obrigação". O sábado, bem pelo contrário na minha interpretação, pois "Mas cada um de nós gostava demais de sábado para gastá-lo com quem não queríamos..."

    Me sinto desaprendendo com essa banca... 

  • O que é isso? Aff 

  • Pessoal,

     

    A alternativa III estaria correta se o examinado tratasse "o sabado" como "aquele sábado", ou seja aquele sabado, o que se refere o texto, era sim obrigação.

  • Gabarito segundo a Banca B, realmente por eliminação fiquei na dúvida entre B/E mas como disse o nobre colega Luan Arruda, voltei ao texto e no trecho que diz :"Mas cada um de nós gostava demais do sábado para gastá-lo com quem não queríamos." ... "Quanto a meu sábado - que fora da janela se balançava em acácias e sombras - eu preferia, a gastá-lo mal, fechá-la na mão dura, onde eu o amarfanahva como um lenço." Fica claro que a autora não vê o sábado como um dia de obrigação, pelo que entendi, naquele sábado as pessoas não queriam estar reunidas. 

     

    Fui na porcentagem e são 55% de erros e 45% de acerto, acho que a maioria interpretou da forma acima... aff :(

  • o item III faz-nos interpretar que todos os sábados são dias de obrigação e o texto não traz esta informação. Descordo completamente com o gabarito.

    III. O sábado para a narradora é um dia de obrigação. 

    Era sábado e estávamos convidados para o almoço de obrigação...ou seja, não era todos os sábados.

  • 1 hora lendo o texto

  • Unica questão obrigatória para ler o texto todo , outras respondi sem precisar ler o texto.

  • Unica questão obrigatória para ler o texto todo , outras respondi sem precisar ler o texto.

  • Questão complicadissíma